"Today", uma publicação gratuita que se define a si própria como o melhor visitor guide do sítio, exibe no seu interior um intrigante anúncio. Logo na quarta página, um convite a duas colunas para a "a maior exposição de Marc Chagall jamais realizada na América".
A ocorrência não pode deixar de me parecer insólita, entrando-me pelos olhos dentro estou eu sentada ao balcão de um coffe bar, "Do-you-want-more-coffe?-Yes-please-thank-you", tal e qual como nos filmes, acabada de chegar a Las Vegas. E Las Vegas, como se sabe, fica no meio do deserto.
Aterrara na noite anterior. Depois de esperar, com algum nervosismo, que o serviço de fronteiras de Queens em Nova York (onde fizera escala) confirmasse que sou uma pessoa de bem (poupo-vos aos pormenores e à minha detenção de 3 horas pela polícia do aeroporto), lá me reconhecem o visto e posso seguir viagem.
«Então, é jornalista?», remata-me a autoridade no final do episódio. «Sim», respondo laconicamente, já de passaporte na mão. «E o que vai fazer a Las Vegas?». A resposta, gambling, saiu pelos vistos com rapidez excessiva, deflagrando um lance de desaprovação e perplexidade no meu interlocutor. Recuo: "Estava a brincar!", e sempre recuando, desta vez em direcção à porta, eclipso-me à pressa pelos corredores.
Em Queens tentara repor os meus níveis de nicotina, pelo que me dirigi a uma funcionária em demanda da smoking area. «Lá fora.» «Lá fora?!», insisto, enquanto me viram as costas. E acabo a fazer horas junto aos deserdados do fumo, sucidando-me com eles por um bocadinho ao ar livre.
Repare-se, no aeroporto Mac Carran não se fuma outside. Uma sala apropriada, a que não faltam algumas máquinas de jogo, espera-nos mal tocamos solo firme, embora seja tal a espessura do ar que até eu própria desisto.
Apesar de ter dormido durante as cinco horas do voo, identifico o passageiro do lado, maço de tabaco na mão. «A primeira vez em Las Vegas?», pergunta-me enquanto esperamos pela malas. Confirmo. Quer saber de onde venho. «Portugal.» «Portugal, Europa?», comenta, surpreendido. «And you?», chuto no meu inglês emperrado. «Eu?» «Sim, o que veio fazer a Las Vegas?». Dispara-me um gambling certeiro, tão certeiro como um royal flush. Então já somos dois. Bom, no meu caso, em rigor não venho para jogar; confesso, contudo, sempre ter tido uma simpatia especial, e não apenas literária, pelo Fyodor Dostoievsky.
Anualmente, os aviões despejam em Las Vegas mais de 30 milhões de passageiros - o correspondente a cerca de 7 a 8% da população americana. O nova-iorquino Ed, motorista negro de tamanho XL que já circulou por Chicago e que há meia dúzia de anos o destino retém por aqui, cuja idade, indefinida, parece ser a idade de quem conseguiu assistir a todos os «fora-de-horas» sem que por isso o olhar lhe endurecesse o rosto, diz-me que a maioria das pessoas que transporta do aeroporto chega para jogar. Jogar ou anything else, acrescenta. Porque tudo é possível em Las Vegas... desde que se tenha dinheiro.
Atenção: Ed não é um cínico, apenas um céptico, nunca por nunca um moralista. Explica-me: «Estás sentada durante horas a desafiar uma máquina. Ficas depenada. Acabas por te ir embora. Chega um tipo qualquer e no segundo seguinte sai-lhe um jackpot daqueles! Percebes o que quero dizer? Ganhar é só uma questão de se estar no sítio certo à hora certa.» Como a vida, Ed? «Yes», como a vida, responde Ed.
Regresso a Chagall. Passados uns dias, hei-de andar de «Today» na mão à procura da Centaur Art Galleries. A coisa cheirava-me a esturro. Las Vegas não é propriamente uma cidade onde se venha para calcorrear museus (apesar do Liberace Museum, do Hermitage Guggenheim Museam e do Guggenheim Las Vegas - do tamanho da Grand Central Station de Nova Iorque, que, como se sabe, é grande). Mas, de tudo o que tinha visto, não imaginava onde poderia encontrar exposta «the largest exhibition of Marc Chagall's art ever shown in America». O mistério adensava-se porque a morada conduzia-me sempre ao Fashion Show Mall, um centro comercial onde já tropeçara vezes sem conta.
Por uma vez entro.
Uma superfície gigantesca, com as lojas do costume e cuja única peculiaridade era ser bastante menos extravagante do que o habitual em Las Vegas: nenhuma Fontana de Trevi, nada de Louvres ou canais venezianos em miniatura, nada de Miguel Angelos em tamanho natural. Bastante europeu, se é que me faço entender... De Chagall, porém, nem vê-lo. Chego a pensar que se tratará de um outro Marc.
Fazendo uma última tentativa, pergunto pela Centaur Art Galleries numa perfumaria. A empregada, solícita, indica-me o primeiro andar do lado oposto àquele onde me encontro. Avisto duas enormes faixas vermelhas que caem sobre o piso térreo junto das escadas rolantes: Marc Chagall inscrito a branco. Só podia ser o mesmo.
Na galeria, dezenas e dezenas de esboços, desenhos e alguns quadros dispõem-se pelas paredes. Os que faltam, para perfazer os duzentos anunciados, amontoam-se pelo chão. Atónita, eis que um homem se aproxima - magro, cabelos apanhados na nuca, óculos de excelente design e fato de melhor corte - tomando a iniciativa de se me dirigir.
«Gosta de Chagall?», e eis que fico sem palavras. Adoro Chagall! - em tom blasé - seria a deixa apropriada? «As pessoas adoram Chagall!», antecipa-se o galerista. Eu vou olhando umas figuras a carvão que retratam os pecados mortais. «É uma série», explica-me. «Os pecados não estão identificados, embora algumas sejam fáceis de adivinhar. O preço pelo conjunto é, evidentemente, negociável. Já tem algum Chagall na sua colecção?»
Começo, finalmente, a entrar no espírito da coisa. Mostra-me as autenticações. «Temos tido imensos compradores. As pessoas, simplesmente, adoram Chagall!», repete-se. «Ao contrário do Picasso. O mês passado tivemos uma exposição e houve quem viesse de propósito só para nos dizer como o detestava!»
Vislumbro uma frecha por onde se esfuma o tema incómodo da minha colecção de arte privada. «Detestava?!», sublinho em tom admirativo. «Sim, consta que era horrível com as mulheres!», confidencia-me. Começo mesmo a entrar no espírito da coisa. Esboço um sorriso. «Bom, não acho muito relevante. Por mim, até podia bater na mãe.» Encara-me surpreendido por detrás dos óculos. «Claro, sim, como artista, claro...», balbucia, como se reflectisse sobre isso pela primeira vez.
Apeteceu-me gritar-lhe: «Bolas, homem! Apesar do Siegel ter ido desta para melhor ainda nenhum de nós era nascido, não precisa de ser tão previsivelmente correcto!» (Fui incapaz de lhe dizer isto em inglês)
Bom, na verdade, até Andy Warhol - Guillermo Cabrera Infante, O Livro das Cidades, capítulo «Viva Las Vegas» - não aguentou o ritmo. E Andy não ficou para a história por ser um menino de coro.
Cito: «Não é de estranhar que Andy Warhol, quando veio e viu, saísse a correr e dissesse 'eu gosto das coisas aborrecidas', querendo dizer que só gostava das coisas aborrecidas e que Las Vegas era, nas suas palavras, 'Demasiado!' De desmaiar.» Pois. Como quando o Howard Hughes, entre gemidos e injecções de morfina, ali-logo-na-hora, contestou o pedido da gerência do Hotel-Casino Le Desert Inn para que cedesse alguns dos quartos do andar que ocupava por inteiro: o pacote pelo dobro do preço real foi a sua última oferta. Em cash (será possível?).
Se me perguntassem agora: «Com o que é que se parece Las Vegas?», só poderia responder: «Las Vegas não se parece com nada.» Recorrendo ainda a Cabrera Infante: «Disse-se que Las Vegas é um caleidoscópico arraial de luzes coloridas. Mas isso não basta. Las Vegas é a única cidade do mundo em que as luzes de néon e as lâmpadas são a arquitectura.»
Confirmam-se as palavras do escritor cubano do cimo da torre do Hotel-Casino Stratosphere (350 metros de altura obrigatórios). Isto de noite, naturalmente. Mas há que subir também à claridade do dia para termos a exacta dimensão do delírio. Porque se do pó viemos ao pó voltaremos. Assim está escrito. E o deserto continua lá.
Areia e montanhas pardacentas (não muito longe fica o Grand Canyon e a cidade mais próxima, LA, a 400 km) estrangulam uma gigantesca cratera na qual se amontoam milhares de casas baixas com garagem e quintal acoplados, e só depois o olhar encontra a Strip - um traçado longo de seis quilómetros onde se alinha pouco mais de uma vintena de edifícios em altura, sede de todos os sonhos e de todos os pesadelos: «Rien ne vas plus!» e soltam-se todas as tremuras ao Fyodor -, que a esta hora se resume a uma inofensiva, desinteressante e estimável avenida.
Se esperarmos até ao anoitecer, a cidade acender-se-á e à sua volta não há-de restar senão uma negritude anterior ao mundo. As luzes e os néons são a arquitectura. Mas mais do que isso: a cidade torna-se paisagem absoluta. E nunca o fake foi tão a única verdade.
Na Strip será preciso esquecer tudo o que julgávamos ser um hotel ou um casino (estão excluídos os que conhecem os locais de jogo no Oriente), e levar um mapa para não nos perdermos no interior destas labirínticas cavernas platónicas onde o sol não entra (ou não o suficiente para se ter uma Ideia do calor que faz lá fora).
Eis-nos no coração dos simulacros soberanos: o dinheiro que remete para as fichas; as fichas que remetem para a sorte; a sorte que remete para o dinheiro; o dinheiro que remete para si próprio (quanto ao Belo, ao Bem e à Felicidade chegarão por acréscimo) - aqui está, meu caro filósofo, o que aprenderíeis em Las Vegas.
Note-se: os hotéis não têm casinos, os casinos têm hotéis e a própria cidade não é mais do que um imenso casino onde nos dão lições grátis pela manhã para que joguemos à noite: «Faites vos jeux madames et messieurs! Faites vos jeux!»
No Paris, uma perna da Torre Eiffel assenta na sala de jogo, as outras duas no passeio público amparando o Arc de Triomphe, o Louvre, a Place de la Concorde e outros clichés; no Caesars Palace (onde Dustin Hoffman, o irmão autista, quase leva a casa à bancarrota - obviamente, uma contradição nos termos), a piscina evoca as termas de Pompeia e uma estátua de César Augusto espera-nos à entrada - Os Que Vão Perder Te Saúdam!, digo eu; o Luxor reproduz em tamanho natural a pirâmide de Gizé, e a Esfinge, também com as medidas exactas, vigia a entrada do hotel; no New York New York podem-se tirar fotografias ao lado da Estátua da Liberdade e ninguém notará a diferença; o Mandalay Bay inspira-se na Birmânia e esconde uma lagoa artificial de tamanho suficiente para nela caberem duas praias de águas tranquilas e uma com ondas de sete metros para surfar no deserto; no MGM Grand (com 5005 quartos - o maior hotel do mundo até à construção do Venitian), meia dúzia de leões passeia-se numa jaula envidraçada, rugidos dobrados e falhos de sincronia que ressoam desgraçadamente pelo lobby; o Venetian (agora à frente, com seis mil acomodações), que veio substituir o mítico Sands onde Sinatra costumava actuar e que chegou a fazer parte do testamento de Hughes, encontrou modelo na cidade italiana, reproduzindo a Praça de São Marcos, as pontes, e até um canal de 400 metros onde casais se passeiam de gôndola sem risco de submergirem, a não ser nas lojas de marca e galerias; The Mirage decidiu-se por uma gigantesca cascata num jardim de mais de mil palmeiras onde, de noite, de 15 em 15 minutos, um vulcão vomita fogo; no Treasure Island evocam-se piratas e na baía em frente ao hotel, onde estão ancorados dois navios, diariamente entre as 16h e as 21h30 os bons do HMS Brittania atacam os maus do Hispaniola (ou será o contrário?).
Perante o que me parece ser uma demência encartada, o histórico Flamingo passa por um exemplar de discretíssimo classicismo... E tudo aqui é tão fake que, antes de ver realmente vistos os pássaros que saltitam por Las Vegas - uma variante de corvos -, apostei que o seu intenso chilrear vinha de uma gravação dissimulada por entre a folhagem das árvores.
As lagostas perseguem-me. Um empregado de papillon e fisionomia hispânica exibe um horrível crustáceo sob um sorriso luminoso: «The ultimate lobster experience». O cartaz está por todo o lado. Hei-de testemunhar, nas ementas gastronómicas, que a lagosta é quase tão democrática como as máquinas caça-níqueis.
O barulho metálico das moedas a serem engolidas - ou despejadas - por estes artefactos luminosos inventados no princípio do século XX, originalmente para distribuição de pastilhas elásticas (três sabores para três rodas giratórias - laranja, cereja e ameixa; quando se alinhavam três iguais levavam-se mais pastilhas para casa), tilinta 24 horas. Aguarda-nos de manhã, quando saímos do hotel, e aguarda-nos à noite, quando regressamos ao hotel.
De slot machines passaram, nos anos 50, a one-arm bandits (bandidos de um só braço) e juro que vi, tão realmente vistos como os pássaros que não eram virtuais, seriam já umas quatro da manhã, uma recém-casada, ainda de bouquet e vestido branco de noiva, um noivo e um padrinho alugado - Presley saído do Viva Las Vegas de 1964 -, puxando afincadamente o único braço do bandido. Red/White/Blue: prémio máximo... não registei os dólares.
O casal, recém-chegado da Wedding Chappel do hotel, acrescentava-se à interminável lista dos famosos que deram o nó em Las Vegas (segundo as estatísticas, um casamento cada cinco minutos; alguns deles durarão mais ou menos o mesmo). Ao longo do tempo, em paralelo à presteza dos serviços matrimoniais, também o jogo se desenvolve. Os dados foram definitivamente lançados em 1931, quando as apostas se legalizaram no Estado do Nevada; a paixão dos americanos pelas artes do azar parece, contudo, ser muito anterior. Roubo a prova a Bill Bryson e a Made in América: «Mark Twain conta a história de um homem do Oeste que vinha dar à viúva de Jo Toole a notícia da sua morte: 'O Joe Toole vive aqui?' e, quando a viúva respondeu que sim, ele disse: 'Quanto aposta que não?'»
Joga-se compulsivamente. Isto, mesmo se os caixas dos casinos nos distribuem prospectos, junto com as fichas, sobre como resistir ao vício na sin city e telefones para onde pedir ajuda (não com certeza monetária).
Tratar-se-á, no essencial, de uma medida cosmética: como transformar a cidade do pecado num resort de férias em família. É verdade que se vêem muitas crianças na rua (à mistura com grupos de hispânicos e índios que distribuem folhetos de sexo full service). Mas o que verdadeiramente distingue Las Vegas de uma qualquer Disneylândia é, não só a origem do dinheiro que lhe corre nas veias como maná dos céus - com o capital não se brinca, nem nos States nem em parte nenhuma do mundo, deve ter sido isto que pensaram Lucky Luciano e Frank Costello imediatamente antes de Ben Siegel ser abatido na sua casa em Hollywood, enquanto lia o jornal na companhia de Virginia Hill que depois nem se deu ao trabalho de aparecer no enterro -, como também, e antes de tudo, o seu passado. E o passado é uma doença de pele: não há lifting que nos livre dele.
Que o diga Deedee Wanwinkle, mais real que todas as luzes da Strip, «silly woman» como ela apostava que eu a haveria de definir quando escrevesse uma história a seu respeito. «Vais escrever uma história sobre mim?», os olhos a brilhar «Oh my god! Não acredito», eu sem saber o que dizer, sabendo-lhe o dinheiro emprestado da licença para croupier perdido num bacará azarento, um filho numa morada provisória a centenas de milhas da casa de onde haviam fugido a um destino que Deedee imaginou poder contrariar em Las Vegas, e agora «faço tudo, menos sexo». Deedee, nome encantador, e eu a querer chamá-la Alice e a desejar-lhe um happy end tão feliz como o do antigo Alice Já Não Mora Aqui do mesmo Scorsese do Casino, retrato de uma época que chegava ao fim.
No Casino participou Oscar B. Goodman, fazendo de si próprio - advogado de Joe Pesci a vestir a pele de Nicky Santoro, na vida real o temível Tony Spilotro -, eleito mayor da cidade em 1999 e um dos juristas mais reputados dos EUA cuja lista de clientes é a prova provada que o Mal existe e não foi inventado nos filmes.
«Dirigir um casino é como assaltar um banco sem haver chuis por perto. Para tipos como eu, Las Vegas limpa todos os pecados. É como levar a moralidade a uma lavagem automática de carros», dizia para a câmara De Niro, Sam «Ace» Rothstein, na vida real Frank «Left» Rosenthal, o outro cliente de Goodman, homem que se descreve a si próprio como um «um cavaleiro que combate a rainha negra do FBI» e que chegou ao poder já a cidade fora declarada limpa do crime organizado.
O «boom» (palavra exacta, porque tiroteio era o que não faltava) regista-se na década de 40 - mas o maior jackpot só deflagrará em 1995, no Las Vegas Hilton: 11,9 milhões de dólares!
Será necessário, porém, recuarmos ao século XIX (em rigor, a 1829) para travarmos conhecimento com Rafael Rivera, um jovem mexicano que, seguindo numa caravana pelo antigo trilho espanhol em direcção a Los Angeles, se aventura pelo deserto e descobre... água! O local ficará assim hispanicamente baptizado para sempre: «vegas», que significa várzea. O caminho até LA encurta-se e os mórmones da Igreja de Jesus Cristo dos Santos do Último Dia chegam ao vale tentando dominar os elementos. O último a desistir parte em 1857 e deixa para trás um forte que ainda hoje faz parte das atracções locais.
No início do século XX, a construção do caminho-de-ferro e, posteriormente, de uma grande barragem no Colorado - a Hoover Dam - atrai ao local milhares de forasteiros. Aos novos residentes, muitos deles fugindo à Grande Depressão, acrescentam-se os militares da Las Vegas Aerial Gunnery Scholl, fundada já a II Grande Guerra galgava desenfreada, mais os que vieram para o deserto testar a desarmonia atómica.
Em 1940, Las Vegas tem 8400 habitantes. Actualmente é a urbe americana com maior índice de crescimento anual - conta com um milhão e quinhentos mil recenseados, a que todos os meses se adicionam quatro mil.
Os primeiros hotéis localizavam-se na Downtown. O Nevada, de 1906, ainda lá está, e chama-se hoje Golden Gate Hotel. É também na Downtown que fica a Fremont Street, uma rua fechada ao trânsito por onde noutros tempos andou a fazer gincanas o escocês Sean Connery, um Bond à velocidade dos 70 escoltado pela voz de Shirley Bassey que jurava a plenos pulmões que os Diamonds are Forever.
De casinos muito menos ostentatórios que os da Strip, na cobertura da Fremont, longa de 400 metros, exibem-se à noite, de hora a hora, sofisticados exercícios pirotécnicos ao som de temas com um vago sabor country, contraponto das vozes metálicas e estranhamente doces que nos garantem continuamente pelas ruas que o «jackpot is happened here!» e que, enquanto esperamos a nossa vez, podemos saborear «three, free, frozen margaritas now!».
Poesia pura, como parece ser a opinião do porteiro do Casino Royale que me pergunta, enquanto tomo nota de um pormenor qualquer: «Are you writting a poem?»
Em 1941 surge o primeiro hotel fora de portas. El Rancho Motel constrói-se na Los Angeles Highway ou Route 91 e, sem que ainda se soubesse, estava a assistir-se ao nascimento da Strip (de nome oficial, mas só oficial, Las Vegas Bouvelard). Clark Gable, Zsa Zsa Gabor, Spencer Tracy, Paul Newman tornam-se clientes habituais, até que o hotel desaparece num incêndio nos anos 60, os terrenos comprados posteriormente por Howard Hughes.
Quando o «gangster» galante e elegante Ben «Bugsy» Siegel chega a Las Vegas acompanhado por Virginia Hill, a Strip resumia-se ao El Rancho, Last Frontier... e futuro Flamingo. A ideia não foi de Ben, apesar de no Padrinho II Meyer Lansky, outro judeu, no filme Hyman Roth, anunciar que ele «foi um homem com visão de futuro». Um futuro curto.
O verdadeiro dono do Flamingo chamava-se Billy Wilkerson, um bem-sucedido empresário de Los Angeles e editor do Hollywood Reporter. Quando decidiu construir um casino em Las Vegas, escaparia a Billy o pormenor que o havia de levar à ruína: ele próprio era um jogador. Endividado o sonho, nada mais lhe restou do que aceitar a proposta irrecusável de Ben «Bugsy» Siegel/Warren Beaty que, na tela, como na vida, acabaria mal. Poucas semanas depois da abertura do Flamingo, Siegel cairia crivado de balas em Beverly Hill, acusado de defraudar os cofres da Mafia. Mas repito-me.
Luzes! Luzes! Luzes! Apenas por quatro vezes Las Vegas se dignou baixar o brilho (um brilho tão eléctrico que basta tocar num puxador em metal para sentirmos uma descarga a percorrer-nos o corpo): por ocasião da morte de Kennedy, na sequência do atentado de 11 de Setembro, e quando Dean Martin e Frank Sinatra (a dupla do inesquecível Deus Sabe Quanto Amei) subiram aos céus.
Fiat lux! terá alguém gritado sobre a várzea, encontrada água naquele buraco perdido no deserto. São sempre insondáveis os caminhos dos homens.
Os mórmones há muito tinham desistido, antes do último dia e muito previamente ao primeiro, esse em que algum bandido de um só braço terá apostado ao póquer em como se há-de erguer aqui uma cidade capaz de ofuscar as estrelas e exortar os homens ao vício, tão certo como termos vindo do pó e ao pó voltarmos - o deserto lá está para o provar - e a luz fez-se! E que a arrogância lhes seja perdoada assim como todas as dívidas de jogo.
3 comentários:
Have you been quoting The Leopard, these days (posts on booking a face)?
gosto deste texto, confesso :)
E eu gosto da "triologia do Chinicato"; mas perdi-me de amores pela "Tante Rose" ;)
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