3 de dezembro de 2013

Nem sempre a lápis (459)

Memória descritiva
Ler
Conhecemo-nos no Jardim Escola.
O de João de Deus.
As senhoras encostavam a Cartilha Maternal ao quadro, e eu imaginava que algumas letras eram brancas porque a ardósia tinha gasto o preto todo.
Era um livro enorme, que elas abriam com um esforço semelhante à nossa capacidade de concentração para ligar as letras.
E quando as ligávamos, apercebiamo-nos que as letras faziam sons.
Bem diferentes daqueles que a Dona Perpétua - era o nome - extraía do órgão do salão.
Mal lhe víamos a moleirinha.
Derreada sobre as teclas, ordenava as notas musicais que deveriam andar à solta dentro do caixote de madeira, à altura do nosso olhar.
Um cavalo de Tróia.
Durante anos, associei a música aos sons que ela retirava dos pedais, e se perpetuou no caderno de encargos trauteado pelas nossas vozes esganiçadas:

“Na nossa escola haja alegria
sejamos sempre bons companheiros
que sempre seja o nosso dia
sermos bonzitos e verdadeiros”.

Sobretudo na alegria e convicção com que rematávamos o último verso.
Ainda hoje me custa a acreditar que tudo não passe de uma canção.
Uma infantilidade.
E tenho a maior dificuldade em compreender os outros sons das letras.
[Longe do mundo; frenesi 2004]

1 comentário:

Cristina Torrão disse...

Repare-se no pormenor de "bonzitos".
É que nada disto era por acaso.