25 de abril de 2010

Nem sempre a lápis (10)

Está mais frio do que contava, sobretudo ao entardecer, e esqueci-me do casaco de antílope quando troquei de carrinha, na Costa da Caparica; enfim, lá as vou desencantando à medida das necessidades. Antes de dar por ela – viria a dar na área de serviço, onde me dou sempre – fui surpreendido pela chamada do vendedor a perguntar se o casaquinho, teve a atenção de lhe chamar assim, também fazia parte do negócio; mas já ia longe e sem direcção fiável para encomendas postais. O cansadinho, na intimidade da utilização, é um velho casaco comprado esqueci-há-quantos-anos em Sintra. Pediu que o resgatasse do ambiente de uma loja – desconheço se ainda existe, nem quanto tempo existiu – preocupada com a reciclagem de roupa e objectos caídos em desgraça, com o toque de graça dos artesanais, tarambecos world; de Autor. Saí da atitude de comércio com ele vestido, usei-o exaustivamente até à cedência ao apelo ou à urgência do momento, cabendo à utilização da Nico, a minha mulher, a marca indisfarçável das mangas dobradas; a protecção de malha da gola já vinha descosida, como garantia de usado. Quando o recuperei, dirigi-me a uma lavandaria que demorou, à-vontade, umas duas semanas a recusar a responsabilidade da limpeza, com argumentos para disfarçar (mal) os problemas da idade. Tratando-se de um clássico, decidi-me pelo restauro sem obsessões de coleccionista, numa que lhe coseu muito bem o forro e a malha – deve haver um nome para aquilo, mas não interessa – passando a usá-lo por cima do polar, quando não chove; não vá afugentar-me o antílope.

Ausente por outras pastagens, o casaco até nem faz assim tanta falta; entretenho-me apenas, no silêncio da luz da sala apagada, a desfilar pela ala dos meus fantasmas, sem o encontrar nas sombras que se espreguiçam e trepam pelas paredes de uma casa habitada por sedimentações de múltiplas memórias. Se fosse minha, e não foram poucas as vezes que o desejei, mandava deitar abaixo a parede em frente para a sala ocupar a inutilidade do quarto ao lado – quando a uso – e nadar na réplica do espaço que habita a minha cabeça. Por muitas remodelações que fizesse, conservaria intocável a composição da mesa sobre o espelho ao lado da cama; intimamente, receio o que passarei a ver quando sair do oftalmologista.

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