20 de abril de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (2)

«Naquela tarde em Mendoza, tinha estreado uma peça a pensar que embora ainda não a dominasse de todo, poderia, mediante grandes esforços, realizar com ela uma aventura extraordinária; imaginava que chegaria a viver instantes desconhecidos de paixão, não só porque não sabia a impressão que produziria nos outros, como tão-pouco sabia o que me aconteceria a mim mesmo com ela. Por outro lado, precisava de brilhar e sentia curiosidade por ver o que diriam os outros. Foi então que ocorreu o desastre e me enfastiei tanto com o meu corpo; mas depois, não tive outro remédio a não ser pensar que entre ele e eu havia, por outro lado, um entendimento estranho. No imediato, no instante de tocar em frente dos outros, ele não tinha medo; pelo contrário, inchava-se de pretensões que teriam sido muito difíceis de cumprir, e chamava todos os sonhos que eu tinha tido antes para que despejassem no presente todo aquele futuro que eles tinham sonhado. O corpo olhava para os seus dez dedos como da altura em que estaria colocado um director de orquestra que tivesse aos seus pés o fosso que está à beira do palco, e onde dez músicos miseráveis se debatessem para servi-lo. A sua cabeça, eriçada pelo orgulho dos seus sonhos, imaginava que no final daquele espectáculo, ele subiria ao palco e as suas mãos seriam tomadas por outras, pelas mulheres pálidas que o levariam à beira do palco; ele inclinar-se-ia perante o público ensurdecedor; e então, baixaria as pálpebras e não olharia os dez músicos que estavam no fosso.

Mas naquela tarde em Mendoza as coisas ocorreram de outra maneira. A princípio ele esperava que os seus sonhos se entenderiam directamente com os sonhos. Mas depois começaram a atraiçoá-lo aqueles dez miseráveis que estavam no fosso. No entanto, ele tinha sido o grande culpado: por um lado, o orgulho dos seus sonhos tinha feito estirar, entre ele e os do fosso, uma distância cheia de esquecimentos (era como uma ponte cheia de buracos) e por outro lado ele tinha tiranizado com paixão cega aqueles pobres miseráveis; tinha-lhes tirado a liberdade de que teriam necessitado para servi-lo melhor: além disso, se a sua paixão não o tivesse cegado desde o princípio, quando trabalhava e ensaiava juntamente com eles, se se tivesse preocupado com a vida e os interesses de cada um e então eles ter-lhe-iam respondido melhor. Mas agora o seu orgulho e a sua paixão tinham sofrido um grande castigo; quando ele viu que eles não podiam cumprir o que ele lhes ordenava, nesse preciso momento quis preocupar-se com cada um deles: foi um recurso de desespero. Quando eles começaram a ficar rígidos, a reter cada um os seus próprios músculos e a confundir o jogo que deviam realizar com os seus companheiros, começou-se a verificar o desequilíbrio: eles iam-se estreitando entre si como jogadores grosseiros. E foi então que o director tinha ido baixando, pouco a pouco, a sua orgulhosa cabeça, quando tinha agachado, pouco a pouco, o seu corpo como se fosse pôr-se de cócoras; tentava comunicar com cada um em separado, mas estavam todos feitos numa massa informe que ia detendo o jogo, e começavam a mostrar os instantes de pausa em angustiantes silêncios que não correspondiam à obra; então, quando o director queria movê-los de novo, mudava de lugar a massa inteira, mas não lograva separá-los. Por fim, ele mesmo aderia ao pelotão, e a coisa terminava sem se saber como: jaziam todos no próprio fosso.»

[Felisberto Hernández, Contos Reunidos; em tradução para a Colecção Ovelha Negra, Oficina do Livro]

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