«Tempo de partir, descalça, nas manhãs, o corpo inundado pelo sol, tempo de giestas, de gaivotas, de trevo, tojo, plantas bravas. Escalar as dunas, transpirar subindo, agarrada à vegetação rasteira, parar arquejante a meio, o mar de repente encoberto pelo chapéu largo de palha, zumbido de abelhas bravas em volta do seu rosto, chegar finalmente ao cimo arrastando o corpo pela areia, sentar-se na primeira pedra e ver o mar, atirar o chapéu para o lado e levantar a cabeça contra o vento, gritar ou cantar ou ficar calada, olhando o mar, deixar passar as horas sem dar conta, voltar finalmente a casa sobraçando um cesto de flores e camarinhas bravas, empurrar a porta e reencontrar Afonso – o candeeiro aceso sobre a secretária inglesa, um halo de luz sobre os livros abertos e as folhas de papel, um halo de luz sobre o seu rosto inclinado que ela não vê logo porque ele escreve de costas voltadas para a porta por onde ela acaba de entrar, só depois se volta e ela poisa ao acaso o cesto que acabará sempre por tombar e aproxima-se descalça, pisando a areia que se solta do seu corpo e as flores que se espalharam pelo chão. A desordem é subitamente uma forma de amor. Interromper Afonso como o mar entrando.»
[Teolinda Gersão, O silêncio; Sextante, Setembro 2007]
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