30 de setembro de 2013
29 de setembro de 2013
28 de setembro de 2013
26 de setembro de 2013
Camaradas
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24 de setembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Obrigo-me a clarificar tudo na minha mente através da escrita, para saber em que ponto estou. Nada é real agora, a não ser o que consigo manter vivo dentro de mim.»
(May Sarton)
Nem sempre a lápis (396)
Longe do mundo
O gado assoma ao largo. Sacode o ar com a cauda e o olhar perscruta a fome. O frio das facas.
A bosta aquece a calçada, e enquanto o vapor se evola
as janelas fecham-se como um crime. Apagam-se as giestas.
Cheira a pão quente e a palha. O queijo amadurece na penumbra, e o sal escorre sobre as tábuas velhas. Estalactites domésticas.
Sobrevivência e artesanato.
Cheira a caça molhada
a pêlo de cão e cavalos suados: licor de chuva.
Papiro do dia (436)
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O meu irmão, John, trouxe-me para cá há duas semanas. É claro que eu soube desde o início que viver com ele nunca resultaria. Tive de fechar a minha própria casa depois do ataque cardíaco (as escadas eram excessivas para mim). O John é quatro anos mais velho do que eu e casou com uma mulher muito mais jovem depois de Elizabeth, a sua primeira mulher, ter morrido. A Ginny nunca gostou de mim. Faço-a sentir-se inferior e não consigo evitá-lo. O John tem hábitos de leitura, sempre teve. Como eu. o John interessa-se por política. Como eu. Ao que parece, os únicos interesses da Ginny são os mexericos maliciosos, o bridge, e experimentar receitas novas. Infelizmente não é uma cozinheira nata. Considero este parágrafo extremamente maçador e foi um esforço enorme escrevê-lo. Ninguém quer ocupar-se de coisas desagradáveis. Neste aspecto não estou sozinha.
Posfácio
Este manuscrito foi encontrado depois do fogo que destruiu a Casa de Repouso Dois Elmos. Numa carta encontrada dentro da capa, a Menina Caroline Spencer pedia ao reverendo Richard Thornhill que o publicasse, se possível. O que foi feito, com a permissão do seu irmão, John Spencer.»
[May Sarton, Prepara-te para a morte e segue-me; trad. Bárbara Smith, Cotovia, Março 1997;
23 de setembro de 2013
22 de setembro de 2013
21 de setembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Agora sei onde estou. Encontrei o lugar que procurava. Após estes meses de vagabundagem, sinto uma nova paz e um novo ardor.»
(J. M. G. Le Clézio)
Nem sempre a lápis (395)
Longe do mundo
São casas com telhados de mãos postas na distância. Vibrantes pela cal e a memória vulcânica. Desconhecem a olaria,
as dedadas da tatuagem.
São refúgio de aves e mistérios. Coalho fresco.
O gado dorme à beira da corda e as hortênsias dividem-lhe o açougue. A inevitabilidade.
Emergiram da lava, sob o olhar das aves que demandam a ilha, guiadas pelas constelações do instinto e a geometria da sobrevivência.
O mar arrefeceu-lhes o ímpeto pelas ravinas, onde traçaram caminhos futuros. Fossilizaram solidões.
Refém das armadilhas deste dialecto,
esqueço os faróis e acendo palavras para me esquecer do mar.
[Longe do mundo; frenesi 2004]
Papiro do dia (435)
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Irei ao porto escolher um navio. O meu é esbelto e veloz, semelhante a uma fragata de asas imensas: chama-se Argo. Navega lentamente para o largo, no mar escuro do crepúsculo, rodeado de aves. E depressa, caída a noite, vogará sob as estrelas, cumprindo o seu destino traçado no céu. Eu estou no convés, à popa, envolto em vento, a ouvir as ondas rebentar na proa e o estalido das velas. O timoneiro entoa para si mesmo o seu canto monótono e sem fim, enquanto sobem do porão as vozes dos marinheiros a jogar aos dados. Somos os únicos seres vivos no vasto mar. Ouma está de novo comigo, sinto-lhe o hálito, o calor do corpo, o pulsar do coração. Até onde iremos juntos? Agalega, Aldraba, Juan de Nova? As ilhas são inumeráveis. Desafiaremos talvez a proibição e iremos até onde o capitão Bradmer e o seu timoneiro encontraram refúgio, até São Brandão? Vamos ao outro lado do mundo, a um lugar onde os sinais do céu e a guerra dos homens já não são de temer.
É noite cerrada, agora. Ouço no mais fundo de mim a chegada do rumor vivo do mar.»
[J. M. G. Le Clézio, O caçador de tesouros; trad. Ernesto Sampaio, Assírio & Alvim, Abril 1994]
20 de setembro de 2013
AQUELA que se refere à relação da esquerda com a pedofilia,
talvez porque raramente leia o expresso, o tal semanário de referência...»
talvez porque raramente leia o expresso, o tal semanário de referência...»
19 de setembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Então, entre os barcos de pesca, os botes, as lanchas, e a multidão de pirogas à vela; vi-o: era um navio já antigo, com o perfil fino e esbelto das escunas, com dois mastros ligeiramente inclinados para trás e duas belas velas áuricas a estalar ao vento.»
(J. M. G. Le Clézio)
Nem sempre a lápis (394)
Longe do mundo
Há uma ilha que me aquece o sono. Basáltica e precária. Com a memória
oceânica assente sob as algas. Covil de faunas e floras maceradas pelo enxofre
à deriva no atlântico:
arquipélago da imaginação e do apetite.
Abro o mapa das minhas mãos sobre a areia. Perdi as linhas e desbaratei as ilhas. Pouco sobra
que sirva de testemunho e aviso à quiromancia estropiada.
As buganvílias bordam-me o esquecimento – a distância.
Papiro do dia (434)
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[J. M. G. Le Clézio, O caçador de tesouros; trad. Ernesto Sampaio, Assírio & Alvim, Abril 1994;
adamastor]
adamastor]
18 de setembro de 2013
17 de setembro de 2013
15 de setembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Não se vê ninguém nas alamedas rectilíneas, e se esta regularidade não ostentasse o selo humano, poderia julgar-me numa ilha deserta.»
(J. M. G. Le Clézio)
Nem sempre a lápis (393)
Longe do mundo
Outrora as estações tinham luz e cheiro. A cal apaziguava o granito
e a fruta antecipava o crepitar das searas nas eiras. O calor do pão e a embriaguez.
As azinheiras empalidecem na paisagem
como uma fotografia lançada ao vento.
A fome leveda sobre a mesa, coberta por um lençol. A farinha denuncia-lhe o trajecto,
amassado com movimentos sábios junto ao fogo. As chamas tendidas.
A água já não ferve na lareira
e a almotolia, a bilha, cheiram a palavras velhas.
Papiro do dia (433)
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A sedução era demasiado forte. Dum salto, ultrapassei a prancha que servia de escotilha, encontrei-me no convés do Zeta. Caminhei até à cadeira e sentei-me nela, à espera, diante da grande roda de madeira do leme. Estava de tal modo encantado pela magia do navio, na solidão do porto, e pela luz do sol-poente, que não dei pela chegada do capitão. Sem dar sinais de estar zangado, veio até mim, olhou-me com curiosidade e disse-me com ar esquisito, ao mesmo tempo sério e irónico:
“Então, cavalheiro, quando partimos?”»
[J. M. G. Le Clézio, O caçador de tesouros; trad. Ernesto Sampaio, Assírio & Alvim, Abril 1994;
a espera]
a espera]
14 de setembro de 2013
12 de setembro de 2013
11 de setembro de 2013
Nem sempre a lápis (392)
Longe do mundo
Esta cidade é um mapa da memória: os rostos sobrepõem-se, as vozes atropelam-se, os gestos entrelaçam-se.
É-nos recusado o anonimato, e dificilmente a tarde encontra um jardim para esperar pela noite.
Só as paredes e as árvores reconhecem as ruas, onde nos repetimos sonâmbulos de cansaço.
Outrora as estações tinham luz e cheiro. A cal apaziguava o granito
e a fruta antecipava o crepitar das searas nas eiras. O calor do pão e a embriaguez.
As azinheiras empalidecem na paisagem
como uma fotografia lançada ao vento.
[Longe do mundo; frenesi 2004]
Papiro do dia (432)
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[J. M. G. Le Clézio, O Caçador de Tesouros; trad. Ernesto Sampaio, Assírio & Alvim, Abril 1994;
sextante]
sextante]
10 de setembro de 2013
9 de setembro de 2013
8 de setembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«Hoje falamos uma língua morta, e cada um de nós a sua.
Acabou a comunicação; só nos falta entregar o cadáver.»
(Henry Miller)
Nem sempre a lápis (391)
Longe do mundo
Há uma ilha que me aquece o sono. Basáltica e precária. Com a memória
oceânica assente sob as algas. Covil de faunas e floras maceradas pelo enxofre
à deriva no atlântico:
arquipélago da imaginação e do apetite.
Abro o mapa das minhas mãos sobre a areia. Perdi as linhas e desbaratei as ilhas. Pouco sobra
que sirva de testemunho e aviso à quiromancia estropiada.
As buganvílias bordam-me o esquecimento – a distância.
[Longe do mundo; frenesi 2004]
Papiro do dia (431)
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Quando se pensa que estes homens, cuja obra tem sido uma inesgotável fonte de inspiração para sucessivas gerações, foram forçados a viver como escravos, que tiveram dificuldades em assegurar uma subsistência pouco melhor que a de qualquer emigrante pobre, que juízo havemos nós de fazer sobre a sociedade que os produziu? Em poucos anos tinham devorado e, o que mais é, digerido, toda a herança de vários milhares de anos. Foram confrontados com a fome no meio duma outra abundância. Era mais que tempo de entregar a alma. A Europa preparava-se já activamente para destruir o molde; o molde que tinha crescido suficientemente para lhe poder já servir de caixão.»
[Henry Miller, O Tempo dos Assassinos; trad. Manuela R. Miranda, Hiena Editora, Outubro 1985;
agência de viagens]
agência de viagens]
6 de setembro de 2013
4 de setembro de 2013
Às vezes, lá calha...
«As almas tímidas vêem constantemente monstros que se lhes atravessam no caminho e tanto lhes chamam hipogrifos como hitlerianos. O pavor do homem é a expansão da consciência.»
(Henry Miller)
Nem sempre a lápis (390)
Longe do mundo
10. Um cavalo continua a habitar-me o sono. Se sonhasse, poderia sentir-lhe o voo
atravessar com ele a febre da memória e repousar, finalmente.
Mas não – ele insiste em percorrer-me o prado onde não estou,
e tudo quanto me resta é a vertigem da água onde se sacia.
Conheci a loucura e a solidão. Tive lapsos. Não levitei, nem atravessei a sombra. Mas vi o Vento
e saboreei o chumbo. Sucedi-me com espanto e emoção.
A coerência nunca foi o meu forte
as minhas fraquezas são a minha única fortuna. Herança repetida.
Papiro do dia (430)
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[Henry Miller, O Tempo dos Assassinos; trad. Manuela R. Miranda, Hiena Editora, Outubro 1985;
com ou sem açúcar?]
com ou sem açúcar?]
3 de setembro de 2013
1 de setembro de 2013
Nem sempre a lápis (389)
Setembro
É o mês da mudança.
Lânguido como o horizonte, que se toldava de cores e sons novos, embebedando-me com compotas e vindimas.
Setembro era o mês da roupa nova e das botas compradas em Viseu.
Da caça e das feiras francas, o mês para mudar de namorada.
E um dia, sem dar por isso, comecei a escrever.
Uma das poucas paixões que conservo e alimento.
Em Setembro saboreei a primeira praia e, pouco depois, a tropa raptou-me à adolescência.
Casei-me e divorciei-me.
De tudo, e sempre em Setembro.
Se me fosse dada a hipótese de escolha, acho que Setembro deve ser um bom mês para se morrer.
[Longe do mundo; frenesi 2004]
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