«Eis-me de novo no sítio exacto onde vi chegar o grande furacão, aos oito anos de idade, quando fomos escorraçados de nossa casa e lançados no mundo, como num segundo nascimento. No cimo da colina, sinto crescer em mim o rumor do mar. Queria falar a Laura de Nada the Lily, que encontrei em vez do tesouro, e que voltou para a sua ilha, contar-lhe histórias de viagens e ver brilhar os seus olhos, como quando avistávamos do alto de uma pirâmide a extensão do mar, onde se é livre.
Irei ao porto escolher um navio. O meu é esbelto e veloz, semelhante a uma fragata de asas imensas: chama-se Argo. Navega lentamente para o largo, no mar escuro do crepúsculo, rodeado de aves. E depressa, caída a noite, vogará sob as estrelas, cumprindo o seu destino traçado no céu. Eu estou no convés, à popa, envolto em vento, a ouvir as ondas rebentar na proa e o estalido das velas. O timoneiro entoa para si mesmo o seu canto monótono e sem fim, enquanto sobem do porão as vozes dos marinheiros a jogar aos dados. Somos os únicos seres vivos no vasto mar. Ouma está de novo comigo, sinto-lhe o hálito, o calor do corpo, o pulsar do coração. Até onde iremos juntos? Agalega, Aldraba, Juan de Nova? As ilhas são inumeráveis. Desafiaremos talvez a proibição e iremos até onde o capitão Bradmer e o seu timoneiro encontraram refúgio, até São Brandão? Vamos ao outro lado do mundo, a um lugar onde os sinais do céu e a guerra dos homens já não são de temer.
É noite cerrada, agora. Ouço no mais fundo de mim a chegada do rumor vivo do mar.»
[J. M. G. Le Clézio, O caçador de tesouros; trad. Ernesto Sampaio, Assírio & Alvim, Abril 1994]
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