23 de dezembro de 2011


uma noite silenciosa e boa

22 de dezembro de 2011

21 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Cada um dos meus pensamentos deve ser arrancado a um âmbito onde reina a demência.»
(Walter Benjamin)

Nem sempre a lápis (245)

E mais logo, se o vídeo não for suficientemente imbecil para me desviar a atenção, lá vou eu todo repimpado a ler Uma História da Leitura, no autocarro rumo ao Sul. Veio com um curioso origami, feito por duas páginas. Conto acrescentar mais um livro à leitura; deixar-me de histórias.

Papiro do dia (165)

«Não se pode sequer falar de ordens ou hierarquias. O mundo do mito convidaria a fazê-lo, mas esse mundo é infinitamente mais jovem que o mundo de Kafka, a quem o mito prometeu já a redenção. A esse respeito sabemos apenas que Franz Kafka não cedeu a essa quimera. Novo Ulisses, “com os olhos fixos no horizonte”, deixou que “as sereias desaparecessem literalmente face à sua resolução; justamente quando mais próximas estavam, ele já nada sabia delas”. Entre os antepassados que Kafka se atribui na antiguidade, contam-se os judeus e os chineses, mas não devemos esquecer este grego. Ulisses encontra-se no limite que separa o mito da fábula. Razão e astúcia introduziram no mito as suas artimanhas; os seus poderes já não são invencíveis. A fábula é a recordação da vitória sobre esses poderes. E Kafka, quando se propôs escrever lendas, escreveu fábulas para dialectos. Introduziu-lhes pequenos truques, a fim de obter a prova de que “até meios insuficientes e pueris podem conduzir à salvação”. É com estas palavras que apresenta a narrativa O Silêncio das Sereias, onde elas efectivamente se calaram; possuem “uma arma mais terrível do que o canto… O seu silêncio”. E recorrem a essa arma junto de Ulisses. Mas este, narra Kafka, “era tão astucioso, tão subtil que nem sequer a ideia de destino lhe podia penetrar o espírito. Talvez se tenha apercebido, embora o fenómeno nos pareça exceder a inteligência humana, que as sereias se calavam; a comédia que lhes opôs (às sereias e aos deuses) serviu-lhe apenas de escudo”.
Em Kafka, as sereias calam-se. Talvez porque nele a música e o canto são uma expressão ou pelo menos um testemunho de salvação. Um sinal de esperança que nos chega desse pequeno mundo intermédio, ao mesmo tempo embrionário e trivial, desconsolador e tonto, onde vivem os ajudantes. Kafka é como o jovem que partiu para conhecer o medo. Chegou ao palácio de Potemkin, mas no final, nos buracos das suas arrecadações, encontrou Josefina, a ratinha cantora, cuja melodia descreve assim: “Há nela algo da pobre, breve infância, algo da felicidade perdida e para sempre irrecuperável, mas também alguma coisa da vida activa e presente, da sua pequena, inexplicável e, no entanto, constante e irreprimível alegria”.»
[Walter Benjamin, Kafka; trad. e intrd. Ernesto Sampaio, Hiena, Novembro 1987]

20 de dezembro de 2011

Parece que o viram por lá



19 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Precisamente. Sem ti, o mundo não ficará vazio, apenas vazio de ti.
É tudo.»
[foto]

Nem sempre a lápis (244)

«Acho que não consigo recordar-me de um júbilo absoluto maior do que o de chegar às últimas páginas, pousar o livro, de forma que o final acontecesse apenas no dia seguinte, e afundar-me na almofada com a sensação de ter na verdade parado o tempo.» Desde que li isto na bloga, percebi que é um livro que faz bem. Gosto de ler até ao fim, sem auto-ajuda. A Letra Livre ainda estava fechada na ZDB e, como era a descer, passei pela Sá da Costa à procura do livro de Alberto Manguel. «Edição de 1998», sorriu o empregado, «tente na Calçada do Carmo». A sugestão lembrou-me que andava com ideia de passar por lá e catar o nicho da Hiena, para Caminhar sem ter de me deslocar à Anchieta, ao sábado. Não havia Thoreau nem Manguel; continuei a pé com Kafka no bolso, por Walter Benjamin e versão de Ernesto Sampaio. Havia dois exemplares e como tenho andado a ler O Bibliófilo Aprendiz, escolhi o menos queimado pelo tempo, com a particularidade de ter o canto inferior direito da página 43, delicadamente dobrado à altura das últimas quatro linhas: «Nenhum outro poeta foi mais rigorosamente fiel ao mandamento:
“Nenhuma imagem te farás. Era como se a vergonha devesse sobreviver-”».

Papiro do dia (164)

«Concentrar-se no revólver. A sua alma é a bala; o seu corpo, o gatilho. O resto é apenas o gesto, simples como um jogo. Um jogo sem competição. Sem adversário. É preciso acreditar simplesmente no jogo, no seu próprio jogo. E pensar apenas no gesto. Em mais nada. Nem na verdade do jogo nem na sua presunção. Tudo o que há a fazer é executá-lo bem, respeitar as suas regras. E não fazer batota.
Agora é preciso preparar a bala, pôr de novo a arma entre os olhos.
É pesado, este revólver.
É a sua mão que enfraquece.
Tem sede.
Também não se deve pensar na água. Devemos dizer-nos que é um jogo e que quando ele acabar levantamo-nos e bebemos água.
Fechamos os olhos.
E disparamos.»
[Atiq Rahimi, Maldito Seja Dostoiévski; trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Teodolito, Setembro 2011;
tiro]

18 de dezembro de 2011

17 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Que fazer. Deve ser dito sem ponto de interrogação. Não é uma pergunta, mas um pensamento. Não, nem sequer é um pensamento, é um estado.»
(Atiq Rahimi)
[estado]

Nem sempre a lápis (243)

Sejamos francos: a preguiça impõe-se ao argumento de trabalhar de rabo-na-boca – lá vai dando para o arroz malandrinho – e ainda não dei uma arrumadela aos livros recuperados. Ultrapassada a descoberta do que saiu dos sacos sem passes de magia, exceptuando Sebald e Auster, as colecções da & etc. e da frenesi, agora é que não faço a menor ideia onde tenho nada. Foi assim que dei com o livro de Henry Miller (Jours tranquilles à Clichy), editado em 1967, comprado na Livraria Nazareth em Évora, com capa a arremedar Vasarely e cores Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band. Admito que pertencesse à sofreguidão livresca do meu primeiro cunhado e não duvido que se encontra em muito melhores mãos; o jeito conservador das minhas. Uma vez mais impelido pela leitura da entrevista de Hemingway à Paris Review, trouxe para o quarto O Velho e o Mar, edição Livros do Brasil ilustrada com desenhos de Bernardo Marques, prefácio e tradução de Jorge de Sena. Na penúltima das cento e trinta e seis páginas pode ler-se, sempre em caixa alta, «Os trabalhos gráficos deste livro foram executados na primeira quinzena do mês de Novembro de mil e novecentos e cinquenta e seis, nas oficinas de Livros do Brasil, Lda., rua Luz Soriano, quarenta e sete a cinquenta e sete, em Lisboa», o que duvido bastante. Não da localização das oficinas – conheci a rua de cor e paginado; hoje, leio-me por ela –, mas tenho dúvidas quanto ao ano a que se refere a quinzena mensal, porque na contracapa, impresso preto no branco, como suponho que manda a lei, lê-se ISBN 972-38-1075-1 por cima do código de barras 9 789723 810752. Nascido sete anos antes da edição, o meu álbum de memórias não conserva imagem de qualquer outro código, além das grades que esperavam quem o infringia. Mas há mais, embora o meu conhecimento da língua inglesa – lida, ouvida, falada – seja de se fugir, a verdade é que não acredito que Hemingway tenha escrito o primeiro período como Sena o pretende em português, com todo o respeito ortográfico pelos anos 50: «Era um velho que pescava sòzinho num esquife na Corrente do Golfo, e saíra havia já por oitenta e quatro dias sem apanhar um peixe.» Fiquemo-nos por aqui. É possível que o defeito se deva à minha formação francófona, condicionada pela idade em que se lia Henry Miller em francês, actualizada à força com a União Europeia, particularmente na sua inevitabilidade ibérica. Não sei. «Paris fechou», anunciava Cesariny há dezenas de anos; Barcelona está em saldo e a soldo desde as Olimpíadas, e eu faço um esforço olímpico para me segurar nas teclas, no meio disto tudo. Abandonado o tabaco, na realidade, sou um fumador de haxixe convicto, a milhas da curiosidade da juventude, a séculos do deslumbramento experimentalista de Walter Benjamin; imagino o incómodo dos discípulos caretas do filósofo.

Papiro do dia (163)

«Esta estranha história, que Rassul baptizou de Nayestan – O campo de caniços –, assombra a sua mente. Ela vive nele, silenciosa, religiosamente. O seu pai também a repisava vezes sem conta, em qualquer lugar, a qualquer momento, a qualquer pessoa. E, de cada vez, pedia a Rassul para que lhe rememorasse os pormenores de que se esquecia. Na realidade, era para que ele servisse de testemunha da veracidade desta aventura incrível. Mas Rassul evitava participar no jogo. Muitas vezes, abandonava o local logo que o pai começava a sua história. Não porque estivesse farto. Não. queria que esta história permanecesse um segredo entre ele e o pai. Porquê? Não tinha a menor ideia. E continua a não saber a resposta. No entanto, muitas vezes conta-a a si mesmo, do princípio ao fim. E sempre que acrescenta um pormenor, subtrai outro. De vez em quando, detém-se muito tempo num dado momento ou numa imagem que corresponde ao seu estado de espírito. Por isso nunca quis escrevê-la, fixá-la num papel. Se a escrevesse, a história seria uma história sem falhas, sem pormenores, uma história morta. Aliás, já não sabe distinguir entre aquilo que o seu pai lhe acrescentou e o que ele mesmo introduziu nela, o que é verdadeiro e o que é falso, o que está relacionado com as suas lembranças e o que faz parte dos seus sonhos… Pouco importa. Neste momento, o estranho é que ele pensa no olhar do burro. Que escondia o animal atrás daquele olhar estúpido?
Tudo. Esse olhar perdido, inocente, incrédulo, interpelava-o: “Por que me perdi? Por que não encontro mais o meu caminho? Onde é que ele está? Não é o caminho que eu tomava habitualmente? O que se passa? Por que deixei de o reconhecer? Porque é que esta pista me é estranha? Será a noite? Ou, talvez, o medo? O cansaço? A dúvida?”. Por não encontrar resposta, estas perguntas transformaram-se em espanto. A causa que fosse para o diabo. O burro estava ali, perdido. E sabia que nunca mais voltaria a encontrar o caminho. Então, só lhe restava gemer. “Que fazer”, sem ponto de interrogação.»
[Atiq Rahimi, Maldito Seja Dostoiévski; trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Teodolito, Setembro 2011;
falha]

15 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«“Não troces de nós, jovem. Foi o destino que nos tornou ridículos, o destino!”, disse ele lentamente, com gravidade. Depois de um breve silêncio, prosseguiu: “O destino… É costume dizer que é o destino que um dia obriga o espelho a contentar-se com cinzas. Sabes o que isso significa?”»
(Atiq Rahimi)

Nem sempre a lápis (242)

Os cães ficaram a dormitar nos sofás, quando vim até à esplanada mais soalheira com a mochila. Não se trata de nenhuma excentricidade, nem que tenha pedido para o fazer, retirada há um mês; estamos à espera do autocarro das quatro. Decorridas quase as mesmas horas, entro em casa com uma nova atitude: ir ao Alvor passar o antivírus, de seis em seis meses.

Papiro do dia (162)

«A velha está prestes a ir-se embora, mas volta-se outra vez para Rassul para avisá-lo de uma coisa: a partir de agora, será ela, e só ela, que indicará a Sufia a hora em que está autorizada a ir-se embora. Ele aquiesce com a cabeça.
Depois manda-o ficar no corredor e dirige-se para a escada. Quando chega ao andar de cima, Rassul começa a andar, com pezinhos de lã, ansioso e perturbado. O machado que esconde debaixo do seu patu pesa cada vez mais; tem os braços moles, as pernas hirtas. Custa-lhe subir os degraus, chegar ao corredor do andar onde volta a ver nana Alia frente a uma pequena porta que ela abre. Depois de hesitar um pouco, entra e fecha a porta atrás de si. Rassul avança pesadamente até à porta. Nela cola o ouvido e escuta as portas das prateleiras abrirem-se e fecharem-se. Respira fundo. Depois, subitamente, arromba a porta com um pontapé e corre para nana Alia, ocupada a contar um maço de notas frente à janela. Mal Rassul ergueu o machado para o abater na cabeça da velha, a história de Crime e Castigo passa-lhe pela cabeça. Fulmina-o. Os seus braços estremecem, as suas pernas vacilam. E o machado escapa-se-lhe das mãos. Racha o crânio da mulher, penetra-o. Sem soltar um grito, a velha cai no tapete vermelho e negro. O seu véu, decorado com motivos de flores de macieira, flutua no ar antes de cair em cima do seu corpo flácido e rechonchudo. É agitada por espasmos. Mais um sopro, talvez dois. Os seus olhos arregalados fixam Rassul, de pé no meio da sala, respiração cortada, mais lívido que um cadáver. Ele treme, o seu patu cai-lhe dos ombros salientes. O seu olhar assustado absorve-se no jorro de sangue que, brotando do crânio da velha, se confunde com o vermelho do tapete, cobrindo os seus traçados negros, escorrendo depois, lentamente, para a mão carnuda dela, que segura um maço de notas. O dinheiro ficará manchado de sangue.
Mexe-te, Rassul, mexe-te!»
[Atiq Rahimi, Maldito Seja Dostoiévski; trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Teodolito, Setembro 2011;
mexe-te!

14 de dezembro de 2011

... longe, de tão perto

13 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«É verdade que não cometeu nenhum crime, mas traiu. Traiu os seus familiares. A traição é pior que o crime.»
(Atiq Rahimi)

Nem sempre a lápis (241)

Aguardei vinte e nove senhas para enviar mais um livro pelo correio; em versão azul, recomendou a afluência. E a mais bonita, era o quadro de três damas inglesas octogenárias, arranjadas para sair e encontrar companhia para o chá no Nacional; notava-se, com delícia. Palmilhei umas boas centenas de metros do reconhecimento, diário, que tenho vindo a fazer de Portimão, para ir buscar um livro à Bertrand. Em princípio, era outro; com o olhar demorado em Canções Mexicanas a mão apanhou Short Movies. Tenho andado arredado da sétima arte e uma mostra de curtas metragens vem mesmo a calhar, reconsiderei ao relento da Riviera. Que necessidade tenho eu de continuar a alimentar o vício de ir a Huelva aos livros e ao tabaco?

Papiro do dia (161)

«“Era um dia de primavera. O Exército Vermelho já deixara o Afeganistão e os mujahedin ainda não tinham tomado o poder. Eu acabara de voltar de Leninegrado. Não posso explicar aqui, neste caderno, a razão da minha ida para essa cidade. Voltemos àquele dia em que te encontrei pela primeira vez. Já lá vai quase ano e meio. Foi na biblioteca da universidade de Cabul, onde eu trabalhava. Vieste pedir um livro e levaste o meu coração. Quando te vi, o teu olhar, fugaz e recatado, intimou-me a deixar de respirar; o teu nome, Sufia, impregnou o meu sopro. Tudo parou à minha volta, o tempo, o mundo… para que tu, e só tu, pudesses existir. Sem te dizer uma palavra, segui-te até à sala de aula; até te esperei à saída do curso. Mas era impossível aproximar-me de ti, abordar-te.
Foi esse amor que me levou a instalar-me neste quarteirão de Dehafghânan, no sopé da montanha de Asmaï, a dois passos da tua casa. Nessa época vocês moravam noutra casa, aquela que dominava a cidade, muito perto dos grandes rochedos que eu queria talhar, como Farhad, para esculpir a tua efígie.
Todas as manhãs acompanhava-te discretamente à universidade e, da parte da tarde, a tua casa. Não tomavas o autocarro, talvez propositadamente. Cabelos cobertos por um véu ligeiro, olhos pregados no solo, caminhavas lentamente. De coração embalado por seres acompanhada – mesmo à distância – por mim, o teu apaixonado, não é verdade? Mesmo assim, certo dia ousaste provocar um acidente para que eu pudesse meter conversa contigo. Um estratagema muito clássico: deixaste cair o teu caderno no chão, esperando que eu fosse apanhá-lo e devolver-to. Mas não, o golpe não surtiu efeito! De facto, apanhei-o, mas nunca to devolvi. Levava-o comigo, apertado contra o peito, como o Corão. E é nesse caderno que te escrevo”.
Trata-se do mesmo caderno em que pegou há pouco para anotar: “Hoje matei nana Alia.”»
[Atiq Rahimi, Maldito Seja Dostoiévski; trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Teodolito, Setembro 2011;
o caderno dela

12 de dezembro de 2011

11 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

(a partir de “Matteo Perdeu o Emprego” de Gonçalo M. Tavares)
Apresentação da Oficina de Criação I pelos alunos do Curso de Artes Performativas
Encenação de Claudio Hochman

Às vezes, lá calha...

«O caminho que tem de percorrer para chegar a casa não é longo. Pode caminhar com calma, devagarinho.»
(Atiq Rahimi)

Nem sempre a lápis (240)

Fui a Huelva sem trazer um livro, nem tabaco, nem mortalhas. Entrei na livraria liberto de ambições literárias; mais para cumprimentar, sem reparar em lombadas. Saí da tabacaria por não valer o incómodo duplicado nos bolsos. Passeatas mais adiante, esperava-me o conforto de um chocolate com churros numa transversal do caudal da crise; demarcada pelo ressurgimento da nova Espanha, abolido o 1.º de Dezembro.

Papiro do dia (160)

«O rangido seco da porta agita todo um exército de moscas que tomou a liberdade de entrar como se tivesse sido convidado, na esperança de encontrar qualquer coisa para comer. Aqui não há nada. Só livros espalhados, um colchão infecto, algumas peças de roupa deformadas, penduradas na parede, uma bilha de barro num canto da sala. E é tudo.
Rassul abre caminho afastando com o pé os livros espalhados à volta do colchão. Atira-se para cima deste sem descalçar os sapatos. Precisa de um momento de descanso.
Fecha os olhos. Respira com regularidade, devagar, lentamente.
A sua língua não é mais do que um pedaço de madeira ressequida.
Levanta-se.
Bebe.
Volta para o colchão.
A sua garganta continua seca e vazia, vazia de som.
Respira fundo, sopra nervosamente.
Não há nada que vibre.
Angustiado, senta-se e bate no peito. Em vão. Bate outra vez, com mais força.
Calma! Não há nenhum motivo para te inquietares. Não passa de um véu na garganta, um mal-estar respiratório. É tudo. Tens de dormir. Amanhã, se continuares assim, irás ver um médico.
Estende-se, volta-se para a parede. Corpo dobrado ao meio, mãos apertadas entre os joelhos, olhos fechados, ele dorme.
Dorme até que se eleva o apelo para a prece da noite e se esbatem os tiros que soam do outro lado da montanha. Depois, cai o silêncio. É este silêncio inquietante que o acorda.
Depois de uma pausa, acende uma vela. Pega num caderno, no meio dos livros, abre-o e rabisca numa página: “Hoje matei nana Alia”; depois, atira-o para um canto, por entre os livros.
Bebe água.
Apaga a vela.
Volta para a cama.
Na parede, por cima do seu corpo moído, o luar projecta uma cruz, a sombra da janela.»
[Atiq Rahimi, Maldito Seja Dostoiévski; trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Teodolito, Setembro 2011;
folha de caderno] 

10 de dezembro de 2011

Já é tempo

9 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...




«Pois é, meu pequeno Rassul, o mundo tem outras preocupações, tem mais que fazer do que observar um pobre louco.»
(Atiq Rahimi)

Nem sempre a lápis (239)

Primeiro fui ao Armazém do Oriente buscar lã para a minha moça fazer um cachecol. Comprei três euros e setenta e cinco cêntimos de cores para a ver a dissolvê-las no novelo verde-seco; esgotado. Não voltei a tempo de apanhar a Casa Ramos aberta, entrevisto o cenário de serviço de chá, café, vinho e cerveja, bancos altos e mesas de madeira corridas, sandes e tostas, seja bem-vindo na ardósia. Todos os ambientes me são favoráveis; larguei o tabaco há três semanas. Para já ou por enquanto, logo se verá.

Papiro do dia (159)

«Passados alguns minutos, cabeças parecidas com cogumelos poeirentos erguem-se pouco a pouco, num silêncio opressivo. As exclamações irrompem:
“Atingiram a estação de gasolina!
- Não, foi o Ministério da Educação.
- Não, foi a estação de gasolina…”
Não longe de Rassul, à sua direita, um velho, deitado, procura qualquer coisa no chão, com um olhar desesperado, resmungando para si: “Vão p’rá fava, vocês e a vossa estação de gasolina e o vosso ministério… Onde está a minha dentadura? Meu Deus, de onde saiu este exército de Yadjûdj e Madjûdj? Os meus dentes…”. Revolve a terra, sob a barriga. “Não viste a minha dentadura?”, pergunta a Rassul, que olha para ele de soslaio como para se perguntar se o velho não foi atingido. “Caiu da minha boca. Perdi-a…
- Ora, bâba, em tempos de fome e de guerra uma dentadura servirá realmente para alguma coisa?”, goza um barbudo diante dele.
“E porque não?”, retorque firme e orgulhosamente o velho, indignado com semelhante reflexão.
“Que felizardo!”, diz o barbudo, que se levanta e sacode o pó. De mãos nos bolsos, afasta-se perante o olhar desconfiado do velho, que resmunga: “Koss-mâdar, tenho a certeza que este filho da mãe me roubou a dentadura…”. Volta-se para Rassul: “Tinha incrustado nela cinco dentes de ouro. Cinco!”. Depois de lançar um breve olhar na direcção do barbudo, prossegue, numa voz cheia de pena: “A minha esposa insistia para que os vendesse para fazer face às despesas da casa. Pus muitas vezes a dentadura no prego. Logo que o meu filho me enviava dinheiro do estrangeiro, ia recuperá-la. Esta manhã, tirei-a do prestamista. Que maldito dia!”. Levanta-se e esgueira-se pela multidão, talvez atrás do homem.
Rassul apreciou a ironia do barbudo, não tanto por cinismo, mas por detestar as próteses dentárias de ouro, sinal exterior da avareza em toda a sua fealdade.»
[Atiq Rahimi, Maldito Seja Dostoiévski; trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Teodolito, Setembro 2011]

8 de dezembro de 2011

Pst...

7 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Sentei-me numa cadeira empoeirada e resolvi esperar pelos acontecimentos. Uma preta gorda, em chinelas, trouxe-nos um café marca três ff: fraco, frio e fedido.»
(Rubens Borba de Moraes)

[O Bibliófilo Aprendiz, Letra Livre, 2011]

Nem sempre a lápis (238)

As mãos sujam-se com a alegria da cor e o cheiro de casca a rasgar-se, quando estilhaçamos uma romã. Idiomas mais belicosos chamam-lhe grenade. Entre nós, talvez para mim, romã conserva feições de adolescência rural: trigueira, faces coradas, bochechas de romã. «E de maçã», vão corrigir os escudeiros da mais feminina entre a fruta; assim tem sido.

[bom proveito]

Papiro do dia (158)

«No Hotel Chateau Mormont, em Sunset Boulevard,
ele tentou surripiar um quadro sem o mínimo valor,
com um choupo encalhado junto a uma poça seca, no deserto.

Apanharam-no com o quadro no parque de estacionamento,
quando o metia sobre o estrado da camioneta.

Quando lhe perguntaram porquê, ele disse-lhes que não tinha bem a certeza.
Disse-lhes que, ao ver a gravura, não lhe pôde resistir.

Disse-lhes que se viu a si mesmo dentro da gravura, deitado
de costas debaixo do choupo.

Disse que reconhecia a árvore de um velho sonho e
que o sonho se baseava numa árvore verdadeira da
sua infância, há muito tempo, de que tinha uma remota recordação.

Lembrava-se de estar deitado debaixo dessa árvore
e de olhar para cima através das folhas de prata.

Lembrava-se de vozes que vinham do meio dessas folhas, mas não conseguia
lembrar-se do que essas vozes diziam ou a quem pertenciam.

Explicou-lhes ainda que esperava que aquela gravura
fizesse regressar à memória tudo o que estava adormecido.

25/7/81
Hollywood, Ca.»
[Sam Shepard, Crónicas Americanas; trad. José Vieira de Lima, Difel, Janeiro 2002 (4.ª ed.)]

6 de dezembro de 2011

5 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Vive de acordo com os seus rendimentos, o seu temperamento, os seus meios emocionais. Será feliz? Sim, acredita que sim. Contudo, não esqueceu a última frase de Édipo: Nenhum homem é feliz enquanto não está morto.»
(J. M. Coetzee)

Nem sempre a lápis (237)

Hoje passei a tarde toda às voltas pela Califórnia e o Arizona e o Texas, com o Sam Shepard. Fartámo-nos de fazer milhas de camião, e demos a palmada num Austin-Healey, mesmo à mão de semear.
Mas os melhores percursos foram feitos de camião, quase um andar acima do asfalto interminável; hipnótico.
Depois de jantar fui até ao Goody’s, na Village. Há mais de duas horas que estou para aqui à espera do Joe Gould; ficou de me mostrar um capítulo da História Oral.
Como está mais que visto que se baldou e não vai aparecer, acho que vou mas é deitar-me.

Papiro do dia (157)

«O camião desapareceu num sítio chamado Plains. As ruas eram todas em tijolo. Automobilistas em passeio nos seus Mavericks. Havia um tráfego incompreensível enquanto andava à procura de um motel para dormir. Encontrou um que se auto-anunciava como “Um Toque de Veludo – Quartos de Luxo”. Achou que merecia um pouco de veludo. Sentir-se entre veludo era precisamente o que ansiava. Aquele veludo podia ser um refúgio depois da estrada.
Ficou com o quarto mais caro, sem se preocupar se tinha dinheiro suficiente. O quarto tinha um cheiro sintético insuportável. Provavelmente o cheiro dos tapetes limpos e desinfectados. As paredes eram um tufo de veludo vermelho. Os cobertores eram de veludo vermelho. As cadeiras eram de veludo vermelho. Tapetes de veludo vermelho. Lavatório vermelho. Cortinas vermelhas. Todos os vermelhos, o vermelho. Não havia um vermelho menos vermelho do que outro vermelho ou mais vermelho do que o vermelho a seguir. O quarto era uma vingança de veludo vermelho. Fez de conta que estava em casa.
Ligou a TV. Um pregador pregava em linguagem gestual. Reparou que o gesto para “Jesus” consistia em bater alternadamente nas palmas de cada mão com o dedo do meio, o que fazia pensar nos cravos espetados, na crucificação. Desligou o som e observou atentamente as mãos do pregador. Teve a sensação de que havia linguagem saltando pelo quarto. (“E nenhum dos seus ossos será partido.”)
Adormeceu no chuveiro, de pé. Sonhou com um homem que tinha conhecido em rapaz. Amarrado a um sicómoro. Queimado não se sabe porquê. A árvore ficou com uma incisão negra que acabou por fechar, mostrando no fim uma casca cor-de-rosa. Limpa como queixo de bebé. Quando acordou ainda via o homem. Pensou que lhe estava a cair chuva na cabeça. E o homem flutuava. E as cinzas do corpo do homem escorriam pelo seu rosto abaixo.
(“E nenhum dos seus ossos será partido.”)
2/79
Plains, Texas»
[Sam Shepard, Crónicas Americanas; trad. José Vieira de Lima, Difel, Janeiro 2002 (4.ª ed.)]

4 de dezembro de 2011

3 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical



Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«A vida no campo sempre teve a ver com vizinhos a maquinar uns contra os outros, desejando pestes uns aos outros, desejando colheitas pobres uns aos outros, desejando a ruína financeira uns aos outros, mas, em momentos de crise, sempre prontos a ajudarem-se mutuamente.»
(J. M. Coetzee)
[complot] 

Nem sempre a lápis (236)

É possível que estas recentes e continuadas deambulações de autocarro, tenham transportado Sam Shepard para o bolso do casacão de bombazina. Actualizei-o o ano passado na véspera da ida a Vila Real, de carro: I would prefer not to, esclarece o pin na lapela. É muito possível. Reli as primeiras Crónicas Americanas, contornando os poemas, também na véspera de ir ao Porto, mas não o abri durante a viagem. Nem no autocarro, com escala em Fátima; nem quando me deitei, sem o acordar. Era tarde e saboreava encontros e reencontros e um serão, no ambiente familiar do quarto na Lusitana. O terminal rodoviário de Sete Rios parece ter-se transformado numa rosa-dos-ventos com bilhetes para os destinos mais impensáveis e às horas mais improváveis. Percursos de três horas, à janela do lado da berma da estrada, com destino ao Sul. Pela primeira vez, que me lembre, deixei o telemóvel em casa.

Papiro do dia (156)

«Na sua opinião, o campo está a mudar-se inexoravelmente para a cidade. Em breve haverá novamente gado em Rondesbochar Common; em breve a história completará o seu círculo.
Portanto, encontra-se em casa outra vez. Não sente que esteja a regressar a casa. não se consegue imaginar a viver novamente em Torrance Road, à sombra da universidade, esgueirando-se como um criminoso, evitando os antigos colegas. Terá de vender a casa, mudar-se para um apartamento mais barato.
Tem as finanças num estado caótico. Não paga qualquer conta desde que partiu. Vive do crédito; mais dia menos dia, o crédito acabará.
O fim da vida errante. O que se segue à vida errante? Imagina-se de cabelo branco, ombros alquebrados, a arrastar os pés até à mercearia da esquina para comprar meio litro de leite e meio pão; imagina-se sentado à secretária sem inspiração num quarto cheio de papéis amarelecidos, à espera que a tarde se extinga para poder fazer o jantar e ir para a cama. A vida se um erudito obsoleto, sem esperança, sem expectativas: estará preparado para isso?»
[J. M. Coetzee, Desgraça; trad. José Remelhe, BIIS, Setembro 2010;
bigodaça portugaise

1 de dezembro de 2011

Breve interlúdio musical

Porque a Net fornece um novo dia

Às vezes, lá calha...

«Quanto mais as coisas mudam mais permanecem iguais. A história repete-se, embora de uma forma mais modesta. Talvez a história tenha aprendido a lição.»
(J. M. Coetzee)

Nem sempre a lápis (235)

Olhei pela janela e calcei as botas com sola de pneu e encaminhei-me para a paragem do autocarro, sem consultar os horários. Perante a impossibilidade de ver o Lapa e o Ângelo quando for ao Porto, fiz-me acompanhar de Barulheira, decidido a sair nas Amoreiras e seguir pelas ramificações da minha geografia urbana, até às esculturas na galeria do Teatro da Politécnica; decidido a matar o tempo. Observei a ansiedade de prestadoras de serviço doméstico, confirmei a passagem de autocarros por que perguntaram, vi a chegada efusiva da miudagem, alheio à passividade branca dos reformados. Não me lembro se passou o 7 ou o 13. Na verdade, todos os números são bons para viajar, embora não os haja em número suficiente; reconsiderei ao entrar em casa.

Papiro do dia (155)

«Durante os últimos anos tem brincado com a ideia de executar um trabalho sobre Byron. A princípio, pensara que se trataria de mais um livro, um opus crítico. Mas todas as tentativas se tinham transformado em tédio. A verdade é que está cansado da crítica, cansado da prosa medida a palmo. O que quer é escrever música: Byron em Itália, uma meditação acerca do amor entre sexos na forma de uma ópera de câmara.
Durante as aulas de Comunicação, passam-lhe pela mente frases, temas, fragmentos de canções da obra não escrita. Nunca foi um grande professor; nesta instituição de ensino transformada e na sua mente castrada, está mais deslocado do que nunca. Porém, também outros dos seus colegas de antigamente o estão, sobrecarregados com ensinamentos inadequados às tarefas que estão preparados para executar, meros funcionários numa era pós-religiosa.
Uma vez que não respeita a matéria que ensina, não tem qualquer impacto nos seus alunos. É como se não o vissem quando fala, esquecem até o seu nome. A indiferença deles fere-o mais do que é capaz de admitir. Não obstante, cumpre inteiramente as suas obrigações para com eles, para com os pais deles e para com o estado. Mês após mês prepara, recolhe, lê e anota os seus trabalhos corrigindo erros de pontuação, ortografia e gramática, questionando argumentos e anexando uma pequena crítica devidamente pensada.
Continua a ensinar, porque o ensino lhe proporciona uma forma de vida; também porque o ensina a ser humilde, porque o faz compreender quem ele é neste mundo. Compreende a ironia: aquele que vem ensinar aprende a mais interessante das lições, ao passo que aqueles que vêm para aprender não aprendem nada. Trata-se de uma característica da sua profissão que não transmite a Soraya. Duvida que ela tenha na vida uma ironia que se lhe compare.»
[J. M. Coetzee, Desgraça; trad. José Remelhe, BIIS, Setembro 2010]