«Não se pode sequer falar de ordens ou hierarquias. O mundo do mito convidaria a fazê-lo, mas esse mundo é infinitamente mais jovem que o mundo de Kafka, a quem o mito prometeu já a redenção. A esse respeito sabemos apenas que Franz Kafka não cedeu a essa quimera. Novo Ulisses, “com os olhos fixos no horizonte”, deixou que “as sereias desaparecessem literalmente face à sua resolução; justamente quando mais próximas estavam, ele já nada sabia delas”. Entre os antepassados que Kafka se atribui na antiguidade, contam-se os judeus e os chineses, mas não devemos esquecer este grego. Ulisses encontra-se no limite que separa o mito da fábula. Razão e astúcia introduziram no mito as suas artimanhas; os seus poderes já não são invencíveis. A fábula é a recordação da vitória sobre esses poderes. E Kafka, quando se propôs escrever lendas, escreveu fábulas para dialectos. Introduziu-lhes pequenos truques, a fim de obter a prova de que “até meios insuficientes e pueris podem conduzir à salvação”. É com estas palavras que apresenta a narrativa O Silêncio das Sereias, onde elas efectivamente se calaram; possuem “uma arma mais terrível do que o canto… O seu silêncio”. E recorrem a essa arma junto de Ulisses. Mas este, narra Kafka, “era tão astucioso, tão subtil que nem sequer a ideia de destino lhe podia penetrar o espírito. Talvez se tenha apercebido, embora o fenómeno nos pareça exceder a inteligência humana, que as sereias se calavam; a comédia que lhes opôs (às sereias e aos deuses) serviu-lhe apenas de escudo”.
Em Kafka, as sereias calam-se. Talvez porque nele a música e o canto são uma expressão ou pelo menos um testemunho de salvação. Um sinal de esperança que nos chega desse pequeno mundo intermédio, ao mesmo tempo embrionário e trivial, desconsolador e tonto, onde vivem os ajudantes. Kafka é como o jovem que partiu para conhecer o medo. Chegou ao palácio de Potemkin, mas no final, nos buracos das suas arrecadações, encontrou Josefina, a ratinha cantora, cuja melodia descreve assim: “Há nela algo da pobre, breve infância, algo da felicidade perdida e para sempre irrecuperável, mas também alguma coisa da vida activa e presente, da sua pequena, inexplicável e, no entanto, constante e irreprimível alegria”.»
[Walter Benjamin, Kafka; trad. e intrd. Ernesto Sampaio, Hiena, Novembro 1987]
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