5 de dezembro de 2011

Papiro do dia (157)

«O camião desapareceu num sítio chamado Plains. As ruas eram todas em tijolo. Automobilistas em passeio nos seus Mavericks. Havia um tráfego incompreensível enquanto andava à procura de um motel para dormir. Encontrou um que se auto-anunciava como “Um Toque de Veludo – Quartos de Luxo”. Achou que merecia um pouco de veludo. Sentir-se entre veludo era precisamente o que ansiava. Aquele veludo podia ser um refúgio depois da estrada.
Ficou com o quarto mais caro, sem se preocupar se tinha dinheiro suficiente. O quarto tinha um cheiro sintético insuportável. Provavelmente o cheiro dos tapetes limpos e desinfectados. As paredes eram um tufo de veludo vermelho. Os cobertores eram de veludo vermelho. As cadeiras eram de veludo vermelho. Tapetes de veludo vermelho. Lavatório vermelho. Cortinas vermelhas. Todos os vermelhos, o vermelho. Não havia um vermelho menos vermelho do que outro vermelho ou mais vermelho do que o vermelho a seguir. O quarto era uma vingança de veludo vermelho. Fez de conta que estava em casa.
Ligou a TV. Um pregador pregava em linguagem gestual. Reparou que o gesto para “Jesus” consistia em bater alternadamente nas palmas de cada mão com o dedo do meio, o que fazia pensar nos cravos espetados, na crucificação. Desligou o som e observou atentamente as mãos do pregador. Teve a sensação de que havia linguagem saltando pelo quarto. (“E nenhum dos seus ossos será partido.”)
Adormeceu no chuveiro, de pé. Sonhou com um homem que tinha conhecido em rapaz. Amarrado a um sicómoro. Queimado não se sabe porquê. A árvore ficou com uma incisão negra que acabou por fechar, mostrando no fim uma casca cor-de-rosa. Limpa como queixo de bebé. Quando acordou ainda via o homem. Pensou que lhe estava a cair chuva na cabeça. E o homem flutuava. E as cinzas do corpo do homem escorriam pelo seu rosto abaixo.
(“E nenhum dos seus ossos será partido.”)
2/79
Plains, Texas»
[Sam Shepard, Crónicas Americanas; trad. José Vieira de Lima, Difel, Janeiro 2002 (4.ª ed.)]

2 comentários:

Luis Peixoto disse...

Obrigado Jorge por me teres "obrigado" a ir à prateleira da estante resgatar este livro.
Abraço
Luis Peixoto

fallorca disse...

Anda-se muito bem com ele.
Abraço