17 de dezembro de 2011

Papiro do dia (163)

«Esta estranha história, que Rassul baptizou de Nayestan – O campo de caniços –, assombra a sua mente. Ela vive nele, silenciosa, religiosamente. O seu pai também a repisava vezes sem conta, em qualquer lugar, a qualquer momento, a qualquer pessoa. E, de cada vez, pedia a Rassul para que lhe rememorasse os pormenores de que se esquecia. Na realidade, era para que ele servisse de testemunha da veracidade desta aventura incrível. Mas Rassul evitava participar no jogo. Muitas vezes, abandonava o local logo que o pai começava a sua história. Não porque estivesse farto. Não. queria que esta história permanecesse um segredo entre ele e o pai. Porquê? Não tinha a menor ideia. E continua a não saber a resposta. No entanto, muitas vezes conta-a a si mesmo, do princípio ao fim. E sempre que acrescenta um pormenor, subtrai outro. De vez em quando, detém-se muito tempo num dado momento ou numa imagem que corresponde ao seu estado de espírito. Por isso nunca quis escrevê-la, fixá-la num papel. Se a escrevesse, a história seria uma história sem falhas, sem pormenores, uma história morta. Aliás, já não sabe distinguir entre aquilo que o seu pai lhe acrescentou e o que ele mesmo introduziu nela, o que é verdadeiro e o que é falso, o que está relacionado com as suas lembranças e o que faz parte dos seus sonhos… Pouco importa. Neste momento, o estranho é que ele pensa no olhar do burro. Que escondia o animal atrás daquele olhar estúpido?
Tudo. Esse olhar perdido, inocente, incrédulo, interpelava-o: “Por que me perdi? Por que não encontro mais o meu caminho? Onde é que ele está? Não é o caminho que eu tomava habitualmente? O que se passa? Por que deixei de o reconhecer? Porque é que esta pista me é estranha? Será a noite? Ou, talvez, o medo? O cansaço? A dúvida?”. Por não encontrar resposta, estas perguntas transformaram-se em espanto. A causa que fosse para o diabo. O burro estava ali, perdido. E sabia que nunca mais voltaria a encontrar o caminho. Então, só lhe restava gemer. “Que fazer”, sem ponto de interrogação.»
[Atiq Rahimi, Maldito Seja Dostoiévski; trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Teodolito, Setembro 2011;
falha]

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