«O café tinha esfriado. O cigarro ardera sozinho no cinzeiro, mas a cinza não se desmanchara. Claude olhava a sala reflectida no espelho, obscura e esverdeada como um aquário gigantesco, e dizia: “E depois?”, mas era uma pergunta desinteressada, feita num tom mole e impessoal, de simples delicadeza.
O pai tinha entrado no quarto como todas as manhãs. Dava-lhe sempre um beijo do lado esquerdo – que não era o do coração mas o da porta. “Passaste bem a noite?”, e pronto, já tinha partido, mesmo que o seu corpo ali continuasse a estar por mais uns momentos. Só tornava a vê-lo à noite, quando se vinha despedir. “Boas-noites, Maria da Graça.” Era como se só a noite o preocupasse. Mas não era isso. O pai cultivava sem uma única falha essas fórmulas de cortesia burguesa, um pouco de meia-tijela, que, segundo dizia, formavam o carácter das pessoas. Graça pensava que ele tinha razão, ou talvez nem isso pensasse porque só mais tarde, no tempo de Claude, começara a olhar para o pai com um certo espírito crítico de que brusca e inesperadamente se descobrira possuidora.
Mais tarde não havia de recordar a quantos estavam do mês, de que mês – unicamente que era Inverno –, mas lembrar-se-ia de outras coisas mais insignificantes do que essa. Leda a entrar-lhe no quarto, por exemplo, muito depois de o pai ter saído. “Bons-dias, Graça.” Adaptara-se com facilidade aos ritos da casa, mais ainda, dir-se-ia que os tinha abraçado com o entusiasmo sempre exagerado de todos os recém-convertidos. “Como te sentes hoje?» Uma pergunta com resposta paga. Naturalmente devia dizer, com um daqueles sorrisozinhos pré-fabricados que tinha sempre em caixa, que “melhor, obrigada” ou então “na mesma, agradeço-lhe o cuidado”. E tudo isso não significaria absolutamente nada visto que todos sabiam que ela não tinha dores nem febre. O que mais a incomodava ainda eram as frieiras.»
[Maria Judite de Carvalho, As palavras poupadas; Publicações Europa-América, 4.ª ed., 1988]
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