«Tinha de o fazer sentir que ele tinha alterado a nossa relação. Fui despejar a água da pia, depois regressei, continuei a fazer outra coisa qualquer e não trocámos mais nenhuma palavra. Mais tarde fui acordar a minha mãe da sua sesta, preparei o jantar e chamei-o, mas ele não apareceu. Eu disse à minha mãe que ele devia ter ido dar uma volta. Era frequente ele fazer isso, quando ficava empancado e não conseguia escrever. Ajudei a minha mãe a cortar a comida, mas não conseguia parar de pensar em coisas nojentas. Sobretudo os ruídos que vinham às vezes do quarto dos meus pais e me faziam tapar as orelhas para não ouvir. E agora eu olhava com espanto para a minha mãe, ali sentada a jantar, e perguntava a mim mesma o que é que ela pensaria ou saberia disso.
Eu não sabia para onde é que ele teria ido. Fui deitar a minha mãe, embora isso fosse trabalho dele. Depois ouvi o comboio a aproximar-se e de repente todo o alarido e o chiar das rodas nos carris, que era o comboio a travar, e devo ter percebido tudo, embora não saiba exactamente quando é que soube.
Eu já te tinha contado que ele foi atropelado por um comboio.»
[Alice Munro, Amada vida; trad. José Miguel Silva, Relógio d’Água, Maio 2013]
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