«Vivia num ambiente falso e fora da realidade. De tanto sonhar não podia senão sonhar. Às vezes exclama de si para si, quando saía por acaso da atmosfera em que vivia submerso: – Valeu a pena? Valeu a pena? Estou cansado, exasperado, depois de uma velhice de fome e de misérias, com longas horas de ódio e olhares hipnóticos sobre a felicidade dos outros. A mocidade sobretudo fere-me. Eu nunca fui moço, nem nunca fui amado, e que fingidos risos de indiferença, que me fazem doer as faces, tenho pelo que chamo banalidades – saúde, amores, ter vida! Até chegar a ser Palhaço, quantas profissões! Actor, cocheiro de praça e mendigo. Da existência de noctâmbulo ficara-lhe um morcego a esvoaçar-lhe no crânio. Por fim, veio trabalhar para o circo. Só saía de noite. De dia ficava no covil do 4.º andar, ruminando pedaços de sonho gastos e esquecidos.
Esta noite encontrei-o enforcado numa oliveira, num arredor da cidade. O luar escorria sobre a ravina, e naquele sítio desolado, triste e inquietante, ele era cómico, pendurado na árvore, mais esguio, a calva a luzir-lhe como uma hóstia, mole, repugnante e coçado. Diário? Nem este velho bêbado teve nunca diário! Foi decerto para se dar ares de incompreendido que deixou estas folhas ao pé da árvore. Como se a sua miséria fosse diferente das outras misérias! Escorraçado e azedo, perseguiam-no como um lobo, até que o fizeram andar com fome e morrer como merecia…»
[Raul Brandão, A morte do palhaço e O mistério da árvore; Biblioteca de Bolso, Junho 2003]
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