19 de julho de 2010

À mão de ler (59)

«Permita-me que duvide. Não um jornalista apaixonado pela vida, como você é. Não um homem do terreno, como eu o definiria. Você, Terradillos, não é um corretor de necrologias. Antes pelo contrário. Você, indagador do mundo, quer conhecer os factos vitais. Você quer narrá-los para os seus leitores, para esses poucos interessados num artífice como Bevilacqua, cujas raízes se afundaram uma vez na região de Poitou-Charentes. Que é também sua, Terradillos, não o esqueçamos. Você quer que esses leitores conheçam a verdade, conceito perigoso, se alguma vez o houve. Você quer redimir Bevilacqua na sua tumba. Você quer dar a Bevilacqua uma nova biografia, armada de pormenores baseados em recordações reconstruídas com palavras. E tudo isto pela paupérrima razão de que a mãe de Bevilacqua nasceu no mesmo recanto do mundo que você. Vã empresa, meu amigo! Sabe o que lhe recomendo? Que se dedique a outras personagens, a heróis mais coloridos, a celebridades mais apelativas, das quais Poitou-Charentes pode verdadeiramente orgulhar-se, como esse mariquinhas heterossexual, o oficial da marinha Pierre Loti, ou esse mimado das universidades ianques, o calvo Michel Foucault.»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Abril 2010;
ilustração: Eric Laforgue]

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