22 de julho de 2010

À mão de ler (62)


«Conheço um punhado de escritores que em Barcelona, San Sebastián, até em Sevilha, chegaram a acabar os livros que tinham arrastado para o exílio dentro de avultadas pastas. Em Madrid, não.
Enrique Vila-Matas interessou-se por este fenómeno que lhe descrevo, o do livro exilado e nunca escrito. Vila-Matas encontrou-se com Bevilacqua nesses anos (se o tivesse visto então, ao futuro autor de O Mal de Montano, um jovem e elegante conhecedor de vinhos e de saias!) e suspeito que foi esse encontro que lhe deu a inspiração para o que, décadas mais tarde, se converteria nesse clássico do inefável, Bartleby & Companhia.
Há uma passagem do Bartleby em que Vila-Matas, estou convencido, fala de Bevilacqua sem o nomear. Você, que é tão lido, sabê-la-á de cor. "Na literatura do Não, há certas obras, não apenas não escritas, como das quais não sabemos nada, nem o tema, nem o título, nem a extensão, nem o estilo. Dizem-nos que tal pessoa, escritor, é um autor conhecido. Mas de quê? Ele próprio nega a sua paternidade, sem nem sequer, como o seu célebre antepassado, se atribuir o papel de padastro. O senhor X diz não ser escritor, não ter escrito; a vox populi contradi-lo e afirma que a sua obra, não lida por ninguém, é remarquable."
Quando Vila-Matas soube da morte de Bevilacqua, escreveu-me a sugerir que o crime tinha razões intelectuais: "Que melhor solução para um pseudo-Bartleby, para o autor de um livro inexistente*, do que fazer dele um inexistente autor. Agora, os dois, autor e obra, partilham o mesmo escaparate vazio."
* Ou "evanescente", não estou seguro de como ler esta palavra; Vila-Matas tinha (e ainda tem) péssima caligrafia. (N. do A.)»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Abril 2010;
foto: Daniel Mordzinsky]

1 comentário:

Anónimo disse...

“Deixamos o senhor Gould assistir a nossas leituras e gostaríamos de admiti-lo, mas não podemos”, declarou certa vez. “Ele não leva a poesia a sério. Servimos vinho em nossas leituras, e é só por isso que ele comparece. Às vezes insiste em ler poemas bobos de sua autoria, e é irritante. Em nossa Noite de Poesia Religiosa, pediu licensa para recitar um poema que escrevera intitulado “Minha religião”. Eu lhe disse para ir em frente, e ele recitou o seguinte:

‘No inverno sou budista,
E no verão sou nudista’

http://glaucocortez.com/2010/05/02/o-segredo-de-joe-gould-de-joseph-mitchell-e-um-livro-para-quem-ama-o-jornalismo-ou-simplesmente-gosta-de-uma-grande-historia/