24 de julho de 2010

À mão de ler (63)


«O interesse literário de Andrea (porque o tinha) inclinava-se, no entanto, para a literatura do Novo Mundo, e, quando nos conhecemos, não sei se foi o meu físico ou o meu passaporte o que a seduziu.
Amigo Terradillos: eu contei-lhe que só conheci Bevilacqua um bom tempo depois de me instalar em Madrid. Haveria então uns dois meses que Andrea e eu saíamos juntos. Eu tinha poucos anos mais do que ela; Bevilacqua, como já lhe disse, uns dez mais do que eu. Ele era elegante, espigado; eu fui sempre para o balofo, e sofro de desalinho crónico. Triunfaram o garbo e a idade. Andrea sentiria que Bevilacqua possuía mais prestígio, mais estirpe. É verdade que, para além dos consabidos olhos de carneiro mal morto, um punhado de cães dava-lhe um aspecto aristocrático, convertendo-o assim nessa personagem que as raparigas da idade de Andrea (se se interessam por literatura latino-americana) associam a um Bioy Casares ou a um Carlos Fuentes para consumo local. Sobre a sua secretária, decorada com imparcial falta de gosto com plantinhas tropicais e animais de peluche, descobri um dia a fotografia emoldurada de um Bevilacqua de vinte anos, com boina afrancesada e braços cruzados, e cara de profeta, sabe-se lá de quê. Perante tal concorrência, retirei-me honrosamente. Acho que Bevilacqua nunca soube da generosidade com que lhe cedi o meu lugar.»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Abril 2010]

Sem comentários: