«CASAS
Falemos de casas com janelas viradas para dentro. Falemos de casas sem lados, casas redondas, casas vazias. Falemos de casas que são ruas e ruas que são casas. Falemos desse mendigo aconchegado à geada, da puta que pernoita atrás de um balcão de crimes potenciais. Falemos das novas estrelas de David com que te marcaram a liberdade. As casa dos poetas sem terra, sem lugar, dos lugares sem sítio, dos poetas sitiados.
Falemos dessas casas enfim expostas, imprimidas numa folha de papel, numa árvore abatida, na demanda do pulmão resfolegante. Passeiam pelas casas e descobrem-lhes o nome, saltam à corda sobre a alcatifa dos jardins, medeiam os abrigos com poses recolhidas.
São tão pobres as casas, tão sem beirais onde fazer o ninho.
CENTAURO
Sou do tempo em que peregrinávamos ao Sítio para ver fossilizada a pata do cavalo. Com o tempo passei a ver ali apenas pedra, nenhum milagre, nem mesmo do tipo desses milagres que por vezes a natureza prega fazendo coincidir as suas formas com as da nossa temerária imaginação.
Passou-se o mesmo com o centauro. A metade que tinha de humano transformou-se numa crina penteada pelos pentes da ganância. Nessa parte, pouco mais podemos observar do que a prudente maquilhagem sugerida por conselheiros de imagem a quem resolve hipotecar-se a si próprio para poder ser aquilo que nunca será.
Resta-nos a metade cavalo, emigrada das montanhas para os apartamentos, com devidas ferraduras nas patas e a graciosidade do selvagem reduzida a pouco mais do que a teimosia de um burrro.»
[Henrique Manuel Bento Fialho, Estranhas Criaturas, Deriva 2010;
foto: autor desconhecido, como desconheço se o da direita leu, de maneira poeticamente correcta, o que o da esquerda escreveu]
2 comentários:
Ainda não leu, mas há-de ler. Não se livra. Estou a preparar ventiladas lá para Setembro. Depois mando convite :-)
Obrigado.
Olha que nós a comentar, taco-a-taco, não prenuncia nada de bom; ainda vem por aí outro terramoto, ahahaha
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