20 de julho de 2010

À mão de ler (60)

«Poucas semanas depois de se instalar em Madrid, Quita já tinha fundado a Casa Martín Fierro, num quarto andar da Prospe, entre as pequenas vivendas e habitações operárias. Ali recebia, como uma refinada máter-famílias, os fugitivos, redimidos, despojados, estropiados, perdidos e salvos que as várias ditaduras da América Latina não tinham conseguido fazer (permita-me o transtivo) desaparecer de todo. Refinada no seu tailleur e nas suas pérolas, o casaco de pele de leopardo posto sobre os ombros como uma capa, um aristocrático buço sobre o lábio superior e olhar sempre atento por detrás dos grandes óculos de tartaruga, Quita tinha para cada um a palavra adequada, sem aquele trejeito de desprezo que a filantropia costuma ter. Por trás da secretária da recepção, uma estante aparatosa exibia um exemplar encadernado em pele de vaca da obra do imortal Hernández, vários livros de autores proscritos pelos militares e um par de recipientes para chá-mate com que Amdrea, a sempre fiel ajudante, tinha aprendido a convidar os recém-chegados. Desde então, nenhum refugiado chegava a Espanha sem passar por Quita para apresentar credênciais.»
[Alberto Manguel, Todos Os Homens São Mentirosos; trad. Umbelina de Sousa, Teorema Março 2010;
autor desconhecido da gravura que ilustra o poema de José Hernández, La Vuelta de Martín Fierro]]

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