16 de julho de 2011

Papiro do dia (101)

«Há uma qualidade, uma espécie de livro, dizem, que afinal acaba por revelar o verdadeiro móbil que leva alguém a escrever e a querer publicar. Que autor, de facto, não terá sonhado escrever um livro que seja quem for o virá a abrir numa hora qualquer para encontrar aí uma cumplicidade que talvez nem sempre lhe tenha assistido ao longo do seu próprio destino, ou uma ou duas páginas que as possa sentir escritas não só para si mas também por si mesmo? É para escrever um dia um livro desses que vou registar agora, neste caderno, o que me trouxe aqui, ao que procedo porque estou aqui, e o que programo até sair daqui? E é para servir a isso que um diário assim é feito? Para exceder, no que lhe cabe, em extensão, em diversidade, em tudo, a intenção, o alvo, a função do que for em si mesmo e do que lhe vai cabendo? Os cinco, ou os seis, ou os que houver, sentidos alerta. O registo escrito, a tradução em escrita, na língua em que se escreva, dos registos experimentados e revelados pelos sentidos, as marcas das ideias e da substância, das massas, das formas, das sombras, do tempo, das margens do texto, das maneiras do tempo? Coisa então para constar, e depender, de estados de alma? E das interferências do concreto em curso, do que interfere no decurso do dia? E até dos sonhos? Porque os sonhos podem determinar a atmosfera de um dia inteiro, impor o retorno ou a erupção de emoções, e depois não há quem, seja ou não de escritas, deixe de dar importância aos sonhos que tem e ao que resolve a dormir. E também, como com os sonhos, o que se anda ler. Atravesso isto tudo a ruminar nas confirmações e nas combinações em que ando a tropeçar seja o que for que leia…»

[Ruy Duarte de Carvalho, As Paisagens Propícias; Livros Cotovia, Março 2005]

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