18 de julho de 2011

Papiro do dia (102)

«Muito novo ainda, aos dezoito anos, o pai de SRO tinha sido mandado para Angola, a ver se o reeducavam, pela família que era a sua, gente mais ou menos instalada e bem relacionada, militares por um lado e proprietários de terras pelo outro, espécie de aliança entre uma burguesia urbana sedimentada e de província, afinada por sucessivas gerações fardadas, e uma discreta elite rural, confundida com remotos morgadios, diligente e zelosa, autoritária e de poucas palavras, patriarcal e paternalista no exercício de uma hegemonia territorial que se alargava a vizinhanças dilatadas de dependentes e tributários, rendeiros e foreiros, criados e assalariados, obrigados todos a tirar-lhes os barretes e a louvar-lhes o bom génio e o coração. Um tio coronel, colocado e muito bem num ministério em Lisboa, vogal nalguns conselhos de administração de companhias a actuar nas colónias, tinha aberto a via para o despachar com destino a Angola, a ver se ele aprendia a ser homem lá, no trabalho da tonga, no duro trabalho do café na mata.
O facto é que porém não passou nem muito tempo, menos de um ano, até que a família não viesse a dar-se conta de que forma o expediente estava afinal destinado a complicar ainda mais a situação. Uma carta mandada pelo director da companhia do Amboim àquele tio do pai de SRO que tinha provido a sua remessa para lá, informa que o rapaz, avesso aos privilégios que por nascimento e relação lhe cabiam e ao lugar que isso lhe podia ter assegurado nas tramas da vida social e mundana da sede da empresa, uma verdadeira cidade, maior que a capital administrativa e comercial da região, a Gabela, passava mas era o tempo todo na roça para onde o tinham mandado, sem se fazer notar nem dar sinal de si, e que agora ia ser preciso fazer alguma coisa. Há mais de dois meses que o jovem não ser de um bebé com que se tinha fechado em casa. Mandaram-lhe então voltar a Portugal. O jovem obedece mas, para escândalo geral e contra todas as expectativas e previsíveis conjecturas, em contexto colonial e afinal em qualquer outro, leva consigo o bebé e desembarca com o filho em Lisboa. A mãe, negrinha avulsa, tinha morrido em Angola, a dar à luz.»

[Ruy Duarte de Carvalho, As Paisagens Propícias, Livros Cotovia, Março 2005;
Gabela]

2 comentários:

José Sousa disse...

Primeiro é para dizer que esta história bem a conheço mas aqui ficou muito aquem! Depois para dizer também que esta foto é original minha, pois fui eu quem a coloquei na internet através de um dos meus blogues! Um abraço...

fallorca disse...

Tudo bem e, se o diz, autoria reconhecida