20 de julho de 2011

Papiro do dia (103)

«Ora a imagem da pobreza, da dependência, da submissão passiva e agradecida, SRO tinha dado por ela colada à pele dos brancos, e não à sua própria pele nem à de alguém com quem se identificasse pela cor. E só mais tarde lhe ia vir ao espírito que o factor cor pudesse ter contado quando em Portugal a bola era sua, o campo de futebol era seu, e lhe expulsavam do jogo, tão inepto era no jogo da bola. É que calçado ali era só ele e o resto era tudo pata-rapada a coçar frieira em canela assanhada, durante o inverno. E assim era o chefe, de qualquer maneira. Convocava bandos de meninos pobres para virem roubar fruta nas hortas do pai e o que se passava, tudo, era num quadro tão dominado pela condição do berço, tão medieval, tão hierarquizado por razões assim enquistadas no tempo, que os guardas viam e não intervinham, iam só queixar ao pai e o pai não ligava. Com ele tinham também sido assim, no seu tempo de infante. Nessa infância, mesmo, só talvez uma vez, porque a criada da professora da escola, que era mulata e escura, raridade total entre os pinhais, lhe afagou o crespo do cabelo, Severo se terá detido na percepção fugaz da sua diferença e ainda assim não era pela cor, era mais claro que muita gente moura, escura, que havia por ali, mas pelo cabelo, sim, mais duro que o dos outros, deu-se conta então. E foi a própria mulata da escola, a preta, como era dita, que o velho degredado lhe referiu para fazer-lhe entender como era que tinha sido a mãe menina que afinal não tinha tido.»

[Ruy Duarte de Carvalho, As Paisagens Propícias, Livros Cotovia, Março 2005;
escreveu torto em máquina direita]

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