«Quando a verdade sobre as descobertas de Fernão de Magalhães começou a ser conhecida na Europa, pelo menos os poetas viram nele um novo Ulisses. Ele próprio, ao prosseguir na sua rota para sudoeste ao longo da costa da Patagónia, deve ter-se lembrado do arquétipo da “viagem louca” do marinheiro até ao fim do mundo. Os motins que teve de acalmar são testemunha do terror que assolava os seus homens; e, quando entreviram através do estreito a costa norte da Tierra del Fuego, talvez possamos perdoar-lhes que tenham tomado as fogueiras dos Fueginos pelas almas mortas que ardiam no Inferno.
Como seria de esperar, os poetas de Europa Renascentista não tardaram a tecer mitologias em torno de Fernão de Magalhães, de Ulisses, dos Estreitos, dos Barqueiros, da Morte e da Ressurreição. Um deles foi o poeta andaluz Don Luis de Góngora que, no seu poema Soledad Primera, descreve o estreito de Magalhães como “o fugidio leme de prata”. Mas nenhum deles descreveu a “passagem sudoeste” para a outra vida de forma mais maravilhosa do que John Donne no seu leito da morte.
Imaginem, pois, a alegria que foi para mim descobrir que a lenda do Barqueiro sobrevive entre os índios destas paragens. Passei os meus últimos dias no Sul na suave ilha verdejante de Chiloe, cujos jovens migram tradicionalmente para trabalharem nos ranchos da Patagónia. A ilha encontra-se dividida por dois lagos, o Huillinco e o Cucao, que correm para o Pacífico, e ao longo dos quais se diz que as almas dos mortos são transportadas antes de atravessarem o mar para o outro mundo.
Descobri que o caminho para Cucaos estava tão mau como no tempo de Darwin: e então, tal como ele fizera há cento e quarenta anos, decidi apanhar o barco. Mas, se ele tivesse conhecimento da lenda do Barqueiro, duvido que se tivesse arriscado a escrever este comentário no seu diário:
O periagua era um barco estranho e tosco, mas a sua tripulação era ainda mais estranha. Duvido que alguma vez se tivessem juntado num mesmo barco seis homenzinhos mais feios.
Quando cheguei a Cucao, fez-me lembrar aquelas reconstruções de aldeias nórdicas que às vezes vemos nos museus escandinavos. Ofereceram-me uma cama na casa maior e, nessa noite, junto à lareira, conheci um índio chamado Don Antonio, um velho contador de histórias. Falou-me de Millalobo, uma espécie de tritão que se apaixonou por uma das filhas do vizinho e a levou para viver com ele num palácio no fundo da lagoa. Falou-me de monstros marinhos, o Basilisco, o Trauco, as Sereias e a Pincoya, uma ninfa ruiva que incentivou os crustáceos a multiplicarem-se.
Quando os últimos raios de luz se escoavam, apontou para uma rocha negra ao fundo da baía e disse que era ali que o Barqueiro ancorava.
“Uma vez”, disse, “conheci um homem que se riu da história do Barqueiro. Avisámo-lo, mas ele foi para ali, pôs-se em cima da rocha e gritou Barqueiro! Barqueiro! – e o Barqueiro veio.”»
[Bruce Chatwin / Paul Theroux, Regresso à Patagónia; trad. Maria do Carmo Figueira, Quetzal, Lisboa 2009]
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