«Tem trechos da memória, isso não há quem não saiba, que emergem por vezes de configurações muito precisas, de detalhes de paisagem, um reduzido mundo que visitado agora não vai por certo corresponder à imagem que a lembrança devolve, vale é a imagem, não há mais nem paisagem nem palavra que a traduza ou valha, reproduzida fica informe e vaga, e prepotente, mesmo citada ao vivo não envolve o outro, é um terreno por demais secreto, e denso. Em tais imagens, porém, é que crepita a chama da lembrança, branda memória que vem crestar o que se vive a custo, o medo, a devoção, a atracção e a fuga, fastio e contenção… apreensão… constrangimento alerta…
Vir ali a ouvir SRO a dizer coisas assim, que o exaltavam, era uma coisa que só me podia deixar perplexo, aturdido, siderado perante aquela performance de exaltação, furor verbal e embriaguez votiva, ao volante de um jipe e a levantar poeira pelas extensões do norte da Namíbia de tal maneira que tudo aquilo não podia ser dito senão aos berros e ao sabor dos solavancos e das emendas bruscas à direcção do carro, dos buracos e das curvas da picada, a que a condução, no limite da velocidade possível, e sem recurso ao travão, obrigava. Para ele o gosto, manifesto e sem disfarce – a dar-se assim, fácil de ler, a personagem –, de se largar e de alargar-se em pistas, de estradas e de lembranças muito percorridas antes, e em torrentes de fala, cascatas às vezes a que respondia, mais do que ao curso e aos acidentes do caminho, a esforçada caixa de velocidades da viatura, estrondosas acelerações, em segunda ou em terceira, para depois engatar a quarta e o jipe assim dava um salto para a frente e o silvo dos pneus, na areia do chão das chanas, excedia o rumor da carburação e era uma pausa extensa em que assentava a fala, e o pó no ar, à volta, que a fala levantava, e dava tempo ao fôlego para se expandir de novo quando na próxima curva a haver, e a ver-se já, fosse preciso meter outra terceira.»
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