«O rangido seco da porta agita todo um exército de moscas que tomou a liberdade de entrar como se tivesse sido convidado, na esperança de encontrar qualquer coisa para comer. Aqui não há nada. Só livros espalhados, um colchão infecto, algumas peças de roupa deformadas, penduradas na parede, uma bilha de barro num canto da sala. E é tudo.
Rassul abre caminho afastando com o pé os livros espalhados à volta do colchão. Atira-se para cima deste sem descalçar os sapatos. Precisa de um momento de descanso.
Fecha os olhos. Respira com regularidade, devagar, lentamente.
A sua língua não é mais do que um pedaço de madeira ressequida.
Levanta-se.
Bebe.
Volta para o colchão.
A sua garganta continua seca e vazia, vazia de som.
Respira fundo, sopra nervosamente.
Não há nada que vibre.
Angustiado, senta-se e bate no peito. Em vão. Bate outra vez, com mais força.
Calma! Não há nenhum motivo para te inquietares. Não passa de um véu na garganta, um mal-estar respiratório. É tudo. Tens de dormir. Amanhã, se continuares assim, irás ver um médico.
Estende-se, volta-se para a parede. Corpo dobrado ao meio, mãos apertadas entre os joelhos, olhos fechados, ele dorme.
Dorme até que se eleva o apelo para a prece da noite e se esbatem os tiros que soam do outro lado da montanha. Depois, cai o silêncio. É este silêncio inquietante que o acorda.
Depois de uma pausa, acende uma vela. Pega num caderno, no meio dos livros, abre-o e rabisca numa página: “Hoje matei nana Alia”; depois, atira-o para um canto, por entre os livros.
Bebe água.
Apaga a vela.
Volta para a cama.
Na parede, por cima do seu corpo moído, o luar projecta uma cruz, a sombra da janela.»
[Atiq Rahimi, Maldito Seja Dostoiévski; trad. Carlos Correia Monteiro de Oliveira, Teodolito, Setembro 2011;
folha de caderno]
folha de caderno]
3 comentários:
a sobreposição das fotografias com textos escolhidos por ti assombra-me sempre... e a lista de coisas a ler vai crescendo, crescendo.
Ainda um dia fazemos uma brincadeira :)
bem pensado :)
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