«Aos vinte anos, e ainda muito tempo depois, aterrava-me a ideia de que podia sem dar conta trocar a vida vivida pela ficcional. Terror de que a escrita alastrasse e preenchesse o meu lugar na vida.
Prudentemente, deixava sempre uma distância, uma dúvida, que não me deixava mergulhar completamente na paixão dos livros. Terror de me embrenhar dentro deles e de ser engolida, de desaparecer noutros mundos. Procurava nos filósofos, que me pareciam mais transparentes do que os escritores porque iam mais directamente ao mundo das ideias, o que neles achava distorcido, inadequado, neurótico, doente, desajustado. Nietzsche, Kierkegaard, Schopenhauer eram um terreno fértil para as minhas divagações.
Mas também escritores como Kleist, Kafka, Georg Trakl e muitos outros. Para mim a grande questão era se a avassaladora hipertrofia da sua vida mental os tinha conduzido ao desespero e confinado ao seu mundo interior sem saída, ou se pelo contrário a escrita foi a tábua de salvação, a forma que encontraram de não sucumbir, no seu mundo mental irrespirável.
A partir de dada altura não tive dúvidas de que esta hipótese era a verdadeira, ou pelo menos muito mais verdadeira do que a outra.»
[Teolinda Gersão, As águas livres – Cadernos II; Sextante, Abril 2013]
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