17 de agosto de 2013

Papiro do dia (426)

«É um erro acreditar que se escreve com palavras. Quem assim pensa está perdido, as palavras são uma cilada.
Suponho que é isso o que me angustia e apavora em alguma poesia, de que logo fujo quando começo a lê-la: a procura obsessiva das palavras que se torna quase um fim em si mesma, a tentativa suicidária da depuração do texto até ao osso.
(…)
Quando alguém morria cobriam-se todos os espelhos da casa. Para resistir à tentação de olhar-se, condenando as vaidades mundanas? Por medo de ver assomar no espelho o espectro do defunto?
No dia do funeral a tia Conceição pendurava no tecto do sótão, suspenso por um fio, o chapéu que o defunto tivesse usado mais vezes. Quando o fio se quebrava e o chapéu caía, era sinal de que a alma tinha entrado no céu.
Mas a tia Otelina, a irmã mais nova que vivia com ela, era um coração de manteiga e não queria sofrimento nem castigo para quem andava a penar. Por isso de vez em quando subia até ao sótão às escondidas e raspava o fio com a lima das unhas, acelerando a queda do chapéu.»
[Teolinda Gersão, As águas livres – Cadernos II; Sextante, Abril 2013;
cilada]
 

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