«Tante Marie tinha uma relação problemática com os parisienses. Vivia numa pequena quinta em Cognac (sim, exactamente aí onde se destila a excelência francesa do mesmo nome), rodeada de galinhas, patos e coelhos, orgulhosa das suas couves e das suas cenouras. No quintal, lembro-me, havia uma árvore que dava dióspiros.
A partir de Novembro a lareira estava sempre acesa na sala de entrada da casa e Tante Marie aproveitava o lume para nos preparar deliciosas galletes à maneira bretã, exigindo-nos que as comêssemos, indiferente aos nossos protestos contra o presumível acréscimo de matéria adiposa que ela assegurava ser uma garantia contra a descida das temperaturas.
Em Cognac raramente nevava, mas, ainda assim, fazia muito frio. Condenadas ao Inverno, as nossas almas elevavam-se na melancolia dos entardeceres prematuros degustando patés, queijos e tartes e Bordeaux, tudo de primeiríssima qualidade.
Por vezes, quando se encontrava na horta debruçada sobre os vegetais, examinando-os com o rigor que se imagina Madame Curie poria nas suas anotações científicas, o barulho de um carro mais veloz interrompia a revista às cenouras e às couves e Tante Marie exclamava em tom reprovador: Ah! voilà les parisiens!
Até poderiam não o ser. Para aquela mulher pequena de aspecto frágil, capaz, todavia, de despachar numa só tarde dez ou mais coelhos de um golpe certeiro, parisien era tão-só sinónimo de urbano-ó-parvo. Sobre estes, tinha ideias tão definitivas como o gesto com que aviava os desafortunados albinos: pobres Bouvard e Pécuchet passeando-se pelos campos nomeando em voz alta os legumes: «Olha, cenouras! Ah, couves!», trocando sempre as referências.
Para Tante Marie, tratava-se da prova provada da idiotice urbana. Estivera em Paris apenas uma vez, logo após o seu casamento, já Hitler estiraçava os seus tentáculos pela Europa fora. Nessa altura, o mercado Les Halles não se convertera ainda no gigantesco centro comercial que o tempo haveria de provar ter sido une idée de merde, o pitoresco Marais não suspeitava sequer do seu futuro gay-chic nem a rive gauche da explosão do Maio de 68. La Defense, claro, não existia, e nem nos sonhos mais megalómanos de François Mitterand lhe passaria pela cabeça vir a ser o arquitecto de La Grande Arche, sem dúvida o melhor de La Defense, esquadria perfeita com o Arc-de-Triomphe que, esse sim, Tante Marie pôde visitar, garantindo no entanto a quem a quisesse ouvir que era bem mais bonito visto de longe.
Quanto à Torre Eiffel, apesar de se ter recusado a subir os 1 665 degraus que a teriam levado ao topo das suas 10 100 toneladas (contas feitas, 324 metros, incluída a antena), Tante Marie ainda agora recordava como se sentira esmagada pela vertigem daquele monstro de ferro.
De regresso a Cognac, comprada uma imagem da Notre Dame que os anos e o chauffage haveriam de amarelecer, pouco tempo depois os alemães fariam a sua entrada triunfal na Cidade das Luzes, para se retirarem cumprido o banho de sangue que não pouparia Tante Marie à morte de um sobrinho, alguns vizinhos e conhecidos. Nunca perdoou aos boches, a quem odiava ainda mais do que aos parisiens, e isso é já dizer tudo.
Mas nem os nazis ousaram reeditar a demência de Nero, o incendiador de Roma. Apesar da carnificina, Paris nunca chegou a arder.
Sabendo-se, pois, que Tante Marie nunca mais lá voltou, podemos – no momento em que me passeio, tantas décadas decorridas, pela gigantesca Feira da Ladra que são os Puces de Clignancourt em busca de um blusão de cabedal à Major Alvega – situá-la sem grande risco à la campagne, qual alquimista submersa em grandes panelas de ferro mexendo compotas que tardam a chegar ao ponto.
Estávamos no Outono e eu desesperava no meio de uma multidão mestiça por encontrar o «meu» blusão. O amigo que me acompanhava desesperava ainda mais do que eu.
Foi então que avistei uma tenda de chapéus. Milhares de chapéus. Chapéus de todas as formas e feitios, usáveis e menos usáveis, de colecção, de teatro, masculinos e ultrafemininos, de Verão e de Inverno, em bom ou mau estado... Enfim, uma tenda-paraíso para apreciadores dos ditos. É o meu caso. Eu adoro chapéus, ainda que reconheça que é difícil usá-los.
A mulher atrás do improvisado balcão aproximou-se de mim naquele jeito nonchalance que só as temíveis consièrges parisienses parecem não praticar. Explico-lhe que vim à procura de um blusão de cabedal e que não posso agora trocá-lo por um objecto tão inversamente delicado como um chapéu. A resposta saiu-lhe pronta: "Ah, mais justement, ça serait très féminin!"
A incoerência convence-me. Regresso de Clignancourt com um chapéu negro de amazona de véu comprido a flutuar ao vento que não fazia...
Nessa noite, ao entrar no Le Mazet, bar que então frequentávamos no Quartier Latin (mesmo ao lado do Le Procope, o café mais antigo de Paris, eleito de Rousseau e Voltaire, só para não ir mais longe), onde nos deliciávamos com balões aquecidos de Cognac que nos provocavam arroubos de nostalgia à lembrança de Tante Marie, o dono precipita-se do balcão e dirige-se-me de braços abertos: "Mademoiselle, vous êtes ravissante!"
Em que outra cidade do mundo nos acolheriam desta forma, só por trazermos na cabeça um despropositado chapéu visivelmente encombrant?
E outra pergunta. Poderá o Canal Saint-Martin, anacronismo perfeito de uma cidade frenética, precipitar uma declaração de amor?
Foi precisamente aí, numa das suas margens, que Flaubert marcou o encontro decisivo entre os dois manga-de-alpaca (Tiens: des carottes! Ah! Des choux!), aquele que os levaria depois à comunhão suspirosa de quão bem estariam no campo!
Quanto a nós, há já alguns parágrafos que abandonámos Tante Marie, rendidos à beleza desta cidade que guarda, para além dos imensos boulevards rasgados por Haussmann, recantos como este, onde o tempo se submete ao ritmo lentíssimo do escoar das águas pelas comportas abertas, fazendo-nos recuar a essa tarde novecentista em que Bouvard e Pécuchet iniciam o mais maravilhoso de todos os livros inacabados.
Paris. Decididamente burguesa. Ostentatória. Por vezes arrogante e demasiado formal. Cidade onde até o garçon de café se crê herói da Comuna, isto sem demérito para os garçons nem excessiva admiração por aquela, que, como se sabe, fez bastante mais vítimas para além de Antonieta, rainha que terá subido ao cadafalso na que hoje se chama Place de la Concorde sem perceber sequer o que lhe acontecia. Cidade onde já foi o tempo em que «as coisas não acontecem de todo se não acontecem em Paris». Mas caramba! Mesmo enterrada a boémia que caracterizou durante anos esta capital, quem não se comover com o we always have Paris! que mande este texto às urtigas.
Porque eu só queria contar isto: era uma tarde de Primavera num jardim de que esqueci o nome. Dois namorados aproximam-se e, o tempo de acender o meu Bastos legère sans filtre (um marca entretanto desaparecida), sentam-se no banco em frente ao meu. Lia um livro (não, não era Proust), e quando voltei a página já eles se confundiam, beijando-se, abraçando-se e escorregando gravitacionalmente para a posição horizontal, cegos aos olhares que, diga-se em abono da verdade do que agora escrevo, se mostravam bastante complacentes para com a efusividade primaveril do jovem casal.
Foi então que fez a sua aparição o clochard, encarnação perfeita de Michel Simon em Boudu Sauvé des Eaux.
Isto passa-se, portanto, no tempo em que ainda existiam Bastos legère sans filtre e vagabundos por conta própria. O homem dirige-se para os corpos confundidos. Toca nas costas do rapaz. Não há resposta. Toca de novo. Nada. Abana-o já com algum vigor quando um rosto ruborizado e de cabelos desgrenhados se destaca no meio da confusão de braços e pernas.
"Oui?" "Tens um cigarro?" O rapaz está de pé e revista os bolsos enquanto a namorada compõe a blusa. "Não tinhas deixado de fumar?", diz-lhe ela. "Ah! Mais oui, mais oui", responde-lhe ele às voltas com as mãos inúteis. O clochard encolhe os ombros e segue. Passa por mim. Eu estou ainda a fumar. "Tu as vu les amoureux?", confidencia-me en passant. Não repara sequer que lhe estendo o maço.
Paris, uma punhalada no coração, escreveu Jack Kerouac que era um viajante solitário e nunca conheceu Tante Marie.»
[... pelo book de outros]
[... pelo book de outros]
13 comentários:
Acho que o link está trocado.
Novo livro de Jorge Fallorca? Muito melhor que Kerouac... :-D
sou eu mas o blogue não :)
Carlos,
estava noutro PC (salvo seja) tipo "maçã" e não atino com aquilo; acabo de repor (tipo repolho) a verdadeira origem da série que a Leoparda tem vindo a facebookar
Pantera,
achas mesmo? Ora lê lá com olhos de gente
Leoparda,
seres tu (no blogue ou no facebook) és sempre; não há volta a dar.
É como escreveres no Farol ou onde (agora) estás; do Barlavento ao Sotavento é sempre uma brisa
(não confundir brisa/aragem, com auto-estradas de Portugal)
Que fotografia espantosa :)
C'a ganda confusão...!
Gosto muito, apesar de estarem em galáxias diferentes e de as referências nada terem a ver, exceptuando o factor errância (refiro-me Kerouac e o autor deste texto cuja identidade conseguiste baralhar-me por completo) que me leva a associá-los.
Tóina :D
Eu até me admira como é que este blogue ainda não foi suspenso ou denunciado, como seria justíssimo, às patrulhas da moral.
Pois que aí está ao centro, no seu devido lugar, a mulher culta, erudita, nívea como Atena, sentada como um velho eremita assente sobre a pedra que Platão lançou no mundo, como se guardasse nela as chaves do Saber e do Divino; e vindo da caverna, das sombras da vida, já esse simbolo da opressão feminina, já esse «monstro de ferro a vapor» se prepara para lançar sobre a guardiã deste Éden a sua vileza - o aspirador! Se a malta do bloco sabe disto, meu Deus, perdão, meu Estado!
(há gajos com uma sorte de cigano. pensar que um tipo, por deixar um livro na cozinha, era e é alvo da mais completa sinfonia de dúvidas acerca do seu carácter e da sua integridade moral... chegar aqui e ver este caos harmonioso, esta liberdade de poder dizer que se arrumou o Homero no tapete da sala, é de ficar a lamber o cotovelo.)
Panurgo... tás a ressacar a QT, sacana
(aperta cá esses ossos)
O Pedro Panurgo é de uma tal dose de contradição que me põe a um rodapé, aquele rodapé que não fica na fotografia.
Asno, bem que lhe partia os ossos.
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Mimos aos gordinhos, Fallorca, que ainda não chegámos à Síria (e às filas para o pão e para a escola, alvos fáceis).
Entendam-se... Os meus netos estão bem, obrigado
Também acho muito interessante ;)
Passo em Cognac todos os anos, isto é, vejo a placa, na auto-estrada, ali, um pouco a norte de Bordéus. E também há outra que diz "Vignobles de Cognac".
Também passo em Paris, mas é uma confusão. Há sempre engarrafamentos e quase sempre acidentes, que ainda demoram mais a coisa. O meu marido costuma comparar os arredores de Paris ao aparelho digestivo. Somos engolidos por alturas do aeroporto Charles de Gaulle (isto, para quem vem de lá, do Norte) e somos expelidos por alturas do aeroporto d'Orly. Pelo meio, muita congestão e prisão de ventre, é uma coisa demorada e esgotante.
Nota: o meu marido é alemão.
Já tinha percebido o Herr :)
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