2 de julho de 2010

À mão de ler (47)

«Passados treze anos, não só me lembro distintamente de todos os desenhos da irmã Irma, como há quatro deles que às vezes me parece recordar demasiado bem, para mal da minha paz de espírito. A melhor obra dela era uma aguarela, em papel pardo. (O papel pardo, especialmente o de embrulho, é muito agradável, muito suave para pintar. São muitos os artistas experientes que o usaram quando não tinham em mãos alguma coisa importante ou grandiosa.) A aguarela, apesar das suas dimensões limitadas (tinha uns vinte centímetros por vinte e cinco), era uma representação pormenorizada de Cristo a ser levado para o sepulcro no horto de José de Arimateia. No canto direito em primeiro plano, dois homens que pareciam ser criados de José transportavam desajeitadamente o corpo. José de Arimateia seguia atrás deles – talvez, dadas as circunstâncias, um tudo-nada empertigado de mais. A uma distância respeitosa atrás de José vinham as mulheres da Galileia, misturadas numa multidão, heterogénea, talvez capaz de ter derrubado cercas, de carpideiras, transeuntes, crianças, e nada menos do que três ímpios rafeiros travessos. Para mim, a figura central da aguarela era uma mulher à esquerda do primeiro plano, voltada para o observador. Com a mão direita erguida, fazia freneticamente sinal a alguém – o filho, talvez, ou o marido, ou possivelmente o observador – para largar tudo e vir depressa. Duas mulheres, na fila da frente da multidão, tinham auréolas. Não tendo nenhuma Bíblia à mão, não podia ir além de conjecturas quanto à identidade delas. Mas reparei imediatamente em Maria Madalena. Pelo menos, estava convencido de que era ela. Estava no centro, em primeiro plano, caminhando aparentemente destacada da multidão, os braços caídos ao longo do corpo. Não se via nenhum sinal de luto, por assim dizer, estampado na cara – na verdade, nenhum sinal exterior das suas recentes e invejáveis ligações com o Defunto. O rosto dela, como todos os outros na pintura, tinha sido feito numa tinta cor de pele, de baixo preço, já preparada. Era penosamente evidente que a própria irmã Irma achara a cor insatisfatória e tinha feito o seu digno e inexperiente melhor para até certo ponto a esbater. Não havia nenhumas outras falhas sérias na aguarela. Nenhumas, já se sabe, para quem não quisesse pôr-se com sofismas. Era, em qualquer sentido decisivo, uma obra de artista, em que aparecia um talento muito, muito disciplinado e Deus sabe quantas horas de trabalho árduo.»
[J. D. Salinger, Nove Contos; trad. José Lima, Difel, Setembro 2005]

2 comentários:

Anónimo disse...

Desconsegui de ver o vídeo da Maria,mas sei que votaria nele!No entanto foi graças a ele e a ela que finalmente vi- e já passaram tantos anos,tão jovens que todos éramos!-o Vídeo-Maria,pérola da pop nacional da sua década,que a RRenascença proibiu!É um texto notável,suportado por um ambiente sonoro entre o opressivo e o refrescante-só que fala de coisas que também se passam nas igrejas...

fallorca disse...

Aquela rádio, de Renascença, só teve a Inquisição à nascença