3 de julho de 2010

À mão de ler (48)

«No final ela morre e ele fica sozinho, embora na realidade tivesse ficado sozinho vários anos antes da morte dela, de Emília. Digamos que ela chama-se ou chamava-se Emília e que ele chama-se, chamava-se e continua a chamar-se Júlio. Júlio e Emília. No final Emília morre e Júlio não morre. O resto é literatura.
Gazmuri não é importante, Júlio é que é importante. Gazmuri tinha publicado seis ou sete romances que em conjunto formam uma série sobre a história chilena recente. Quase ninguém os compreendeu bem, salvo talvez Júlio, que os leu e releu várias vezes.Como é que Gazmuri e Júlio acabam por se unir?
Seria excessivo dizer que se unem.
Mas unem: um sábado de Janeiro Gazmuri espera Júlio num café de Providencia. Acaba de pôr ponto final num novo romance: cinco cadernos Colón inteiramente manuscritos. Tradicionalmente é a mulher quem se encarrega de lhe transcrever os cadernos, mas desta vez ela não quer, está cansada. Está cansada de Gazmuri, não lhe fala há duas semanas, por isso Gazmuri sente-se esgotado e desamparado. Mas a mulher de Gazmuri não é importante, o próprio Gazmuri importa muito pouco. O velho telefona, então, à sua amiga Natália e a sua amiga Natália diz-lhe que está muito ocupada para transcrever o romance, mas recomenda-lhe Júlio.
Escreves à mão? Hoje em dia ninguém escreve à mão, observa Gazmuri, que não espera a resposta de Júlio. Mas Júlio responde, responde que não, que usa quase sempre o computador.
Gazmuri: então não sabes do que falo, não conheces a pulsão. Há uma pulsão quando escreves no papel, um ruído do lápis. Um estranho equilíbrio entre o cotovelo, a mão e o lápis. Júlio fala, mas não se escuta o que diz. Alguém deveria aumentar-lhe o volume. A voz rouca e intensa de Gazmuri, pelo contrário, retumba, funciona:
Escreves romances, esses romances de capítulos curtos, de quarenta páginas, que estão na moda?
Júlio: Não. E acrescenta, apenas para dizer algo: O senhor recomenda-me que escreva romances?
Repara nas perguntas que fazes. Não te recomendo nada, não recomendo nada a ninguém. Julgas que marquei encontro contigo neste café para te dar conselhos?»
[Alejandro Zambra, Bonsai; trad. Jorge Fallorca, Teorema - Fevereiro 2008]

6 comentários:

Nuno Monteiro disse...

Infelizmente os bons livros não chegam a todo o país...

fallorca disse...

É possível, mas Vila Real é o reduto de dois excelentes poetas

Nuno Monteiro disse...

"isto anda tudo ligado" e etc

é um deles?

fallorca disse...

Era, também «é assim que se faz a história»... Felizmente, aqueles a quem me refiro, são pai e filho (curiosamente, também) e julgo-os e espero que estam de boa saúde.
abraço

Nuno Monteiro disse...

Estará, talvez a falar do Pires Cabral... também gosto! e se sim, sim, estão de boa saúde.

já agora! deixe que lhe pergunte... na sua opinião, por que é a América latina berço de tantos e tão bons contadores de histórias...

fallorca disse...

Gostei de ler que estão bem de saúde.
Quanto à sua pergunta, sinceramente, não sei; talvez por ser o Novo Mundo, ter menos vícios... Não sei.