7 de julho de 2010

À mão de ler (50)


«Harry desceu os degraus que dão para o jardim. Muitos doentes se encontravam aí. Haviam-lhe dito que a sua mulher, Glória, também lá estava. Avistou-a sentada a uma mesa, sozinha. Apareceu-lhe pelas costas, de esguelha. Contornando a mesa, sentou-se diante dela. Glória permanecia hirta, muito pálida. Olhava sem o ver. A pouco e pouco deu por ele.
“É você o condutor?” indagou.
“O condutor de quê?”
“O condutor da verosimilhança.”
“Não, não sou eu.”
Estava pálida, os olhos pálidos, de um azul pálido.
“Como te sentes, Glória?”
A mesa era em ferro, pintada de branco, uma mesa para durar séculos. Com uma jarrinha de flores ao centro, flores mortas de tristeza, dependuradas nuns caules murchos.
“Enrabador de putas! Andas a foder esses coirões, Harry.”
“Não é verdade, Glória.”
“Elas chupam-ta, é?! Chupam-te a picha?”
“Estive para trazer a tua mãe, Glória, mas a gripe deitou-a abaixo.”
“Essa coruja está sempre por baixo de qualquer coisa… És tu o condutor?”
Os outros doentes continuavam ali, ou sentados às mesas, ou encostados às árvores, ou estendidos pela relva. Imóveis e silenciosos.
“A comida é boa, Glória? Já travaste amizade com alguém?”
“Horrível. Não. Enrabador de putas.”
“Queres que traga alguma coisa para leres? Que posso eu trazer?”
Glória não deu resposta. Ergueu apenas a mão direita à altura dos olhos, cerrou o punho e agrediu-se com toda a força no nariz. Num salto, Harry agarrou-a pelos pulsos. “Glória, por favor!”
Ela desata a chorar. “Não trouxeste chocolates.”
“Glória, disseste que detestavas chocolates.”
Desfazia-se em lágrimas. “Não detesto nada chocolates! Eu adoro chocolates!”
“Por favor, Glória, não chores… Eu vou trazer-te chocolates, tudo o que tu quiseres… Ouve, aluguei um quarto num motel aqui ao pé só para ficar perto de ti.”
Os seus pálidos olhos esbugalharam-se. “Num motel?! Estás lá metido com uma puta de merda! Juntos, a verem filmes porno, e têm espelhos no tecto do quarto!”
“Fico nas redondezas por uns dias, Glória”, disse Harry com suavidade. “Poderei trazer tudo o que tu peças”.
“Então traz-me o teu amor”, gritou Glória. “Por que raio não me dás tu o teu amor?”
Alguns doentes viraram-se para olhar.
“Glória, tenho a certeza de não haver ninguém assim como eu, capaz de cuidar de ti.”
“Querias trazer chocolates, não era? Pois mete os chocolates na peida!”
Harry retirou um cartão da carteira. Um cartão do motel. E estendeu-lho.
“Guarda, antes que me esqueça. Deixam-te fazer telefonemas? Telefona se precisares de qualquer coisa.”
Sem dizer palavra, Glória pegou no cartão, dobrou-o em quatro. Depois curvou-se para descalçar um sapato e meteu-o lá dentro, voltando a calçar-se.
Só nessa altura Harry avistou o doutor Jensen a atravessar o relvado direito a eles. Vinha radiante.
“Ora, ora, ora…”
“Olá, doutor Jensen” disse Glória sem vivacidade.
“Posso sentar-me?” perguntou o médico.
“Faça favor” disse Glória.
Homem gordo, o médico. Tresandava a gordura, a responsabilidade e a autoritarismo. As sobrancelhas, não parecia, mas eram de facto carregadas. Dir-se-ia quererem chegar àquela boca redonda e húmida e aí levar sumiço, mas a vida não deixava.
O médico olhou Glória. Olhou Harry. “Ora, ora, ora” repetiu. “O que conseguimos até agora, põe-me realmente satisfeito…”
“É verdade, doutor, estava mesmo neste instante a dizer ao Harry como me sinto equilibrada, como me têm feito bem as consultas e a terapia de grupo. Perdi imenso daquela estúpida raiva, da minha frustração e até dessa destrutiva auto-comiseração…”
Glória tinha as mãos sobre o regaço, sorria.
O médico sorriu para Harry. “Fez uma recuperação notável, a sua senhora.”
“Sim, sim” retorquiu Harry, “nota-se.”
“Acho que será questão de pouco mais tempo, e Glória estará de volta a casa, Harry.”
“Doutor” pediu Glória, “dá-me um cigarro?”
“Com certeza.” E estendeu-lhe um maço de cigarros de fantasia e um isqueiro doirado aceso. Glória deu uma passa lenta…
“Tem umas belíssimas mãos, doutor.”
“Sim, querida. Obrigado.”
“E uma simpatia redentora, uma simpatia que cura…”
“Bom, fazemos o melhor que podemos cá na casa… E agora, se me desculpam, tenho de conversar com os outros pacientes.” [...]»
[Charles Bukowski, Dá-me o Teu Amor; trad. Paulo da Costa Domingos, Hiena Editora, Lisboa, Setembro 1985]

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