8 de julho de 2010

À mão de ler (51)

«[...] Ergueu as carnes da cadeira lentamente e pôs-se a caminho da mesa de outro casal.
Glória fixou Harry. “Cabrão de gordo! Atulha-se de merda de enfermeira às refeições...”
“Foi óptimo estar contigo, Glória, mas fiz uma viagem longa, preciso de repouso. Julgo que o doutor tem razão, acho-te um pouco melhor.”
Ela riu-se. Um rir sem alegria, teatral, de cor. “Não estou nada melhor; de facto, regredi…”
“Isso não é verdade, Glória…”
“A doente sou eu, cabeça-de-atum. Posso fazer o diagnóstico como ninguém.”
“Chamaste-me ‘cabeça-de-atum’!?”
“Nunca te disseram que tens uma cabeça de atum?”
“Não.”
“Quando te barbeares, vê bem. E cuidado, não cortes as guelras.”
“Vou embora… volto amanhã…”
“Da próxima traz o condutor.”
“De certeza que não precisas de nada?”
“Vai lá foder as putas do motel!”
“E se eu te trouxer a New York? Tu gostavas dessa revista…”
“Mete a New York no cu, cabeça-de-atum! E de seguida mete também a TIME!”
Harry apertou-lhe a mão com que ela se agredira. “Eu não te abandono, aguenta. Em breve ficarás boa…”
Glória não deu sinais de o ter ouvido. Harry levantou-se vagarosamente e dirigiu-se para a escada. A meio do lanço voltou-se para acenar. Glória não tugira.
Estavam às escuras, na maior, quando o telefone tocou.
Harry continuou, mas o telefone não se calava. Era incómodo. E a piça murchava.
“Merda”, disse, rolando. Acendeu a luz, pegou no auscultador. “Está?”
Era Glória. “Com que então a foder!”
“Glória, como é que te deixam telefonar a uma hora destas! Será que não te dão nada para dormir?”
“Por que levaste tampo tempo a atender?”
“Não costumas cagar? Pois apanhaste-me a meio de uma boa cagada.”
“Aposto que sim… E vais acabá-la mal te vejas livre do telefone.”
“Glória, foi essa tua maldita paranóia que pregou contigo aí onde estás.”
“Cabeça-de-atum, a minha paranóia tem sido o pressentimento de uma verdade oculta…”
“Olha que isso não faz sentido. Vai dormir. Irei ver-te amanhã.”
“Como queiras, cabeça-de-atum, vai lá acabar a FODA!”
Desligou. Sentada à ponta da cama, roupão vestido, Nan tinha o seu whiskey sobre a mesa de cabeceira. Acendeu um cigarro, cruzou as pernas.
“Então a tua mulherzinha?”
Harry, enchendo um copo, veio sentar-se-lhe ao lado.
“Lamento, Nan…”
“Lamentas o quê, quem? Ela ou eu ou o quê?”
Harry deu um trago na bebida. “Não vamos fazer disto nenhum drama.”
“Ah sim!? Que propões então que faça? Uma tragédia? Tentar talvez acabá-la? Ou preferes ir à retrete esgalhar uma?”
Harry fitou Nan. “Raios me partam, não armes em esperta. Tu sabias da situação tão bem como eu. Mas tu quiseste vir!”
“Não fosse eu, trazias algum coirão!”
“Oh merda, só faltava outra vez essa palavra.”
“Qual palavra? Qual palavra?” Nan despejou o copo e arremessou-o à parede.
Harry foi buscá-lo, encheu-lho de novo, e depois vazou mais álcool também para si.
Nan baixou os olhos sobre o copo, deu um gole e poisou-o. “Vou telefonar-lhe, vou contar-lhe tudo!”
“O caralho é que tu vais! Ela é tarada!”
"Tu é que és um cabrão tarado!”
Nisto o telefone toca de novo. O aparelho continuava onde Harry o havia deixado, a meio do quarto, no chão. Ambos pularam da cama direito a ele. Ao segundo toque caíam-lhe em cima, agarrando cada qual a sua extremidade do auscultador. Rebolaram pelo tapete, arquejando, pernas, braços, corpos, num desesperado amálgama, reflectido pelo espelho do tecto.»
[Charles Bukowski, Dá-me o Teu Amor; trad. Paulo da Costa Domingos, Hiena Editora, Lisboa, Setembro 1985]

2 comentários:

MCS disse...

Bem, eu não conhecia isto!
Não haverá uma editora que queira reeditar?
Fantástico, vou ver se encontro pelos alfarrabistas.
O Paulo da C.D. não pode propor a reedição ou mesmo a Frenesi a reeditá-lo?

fallorca disse...

Não creio que esteja esgotado, tente na http://frenesilivros.blogspot.com/