11 de julho de 2010

À mão de ler (53)

«Na manhã seguinte. curiosamente, despertou a sentir-se como não se sentia havia muito tempo, como se a tosse devastadora fosse uma tempestade que, após passar, o deixara quase renovado, sem que sentisse sequer a habitual falta de ar. Fanny pediu-lhe que ficasse na cama, mas ele recusou. Sentia-se cheio de uma energia deliciosa, e depois do pequeno-almoço pôs-se a escrever mais um capítulo do livro em que estava a trabalhar, uma história sombria e romântica, passada na Escócia. Em cada gesto seu havia uma sensação de urgência que o deixava intrigado e o deliciava. Estava ansioso por começar. Sentou-se, endireitou a pequena fileira de livros na escrivaninha, tirou algumas folhas de papel de debaixo do mata-borrão e mergulhou a pena no tinteiro.
Embora costumasse ditar para Lloyd ou Belle, por causa da cãibra de escrivão que se acrescentara recentemente à sua velha lista de maleitas, sempre que possível Stevenson preferia escrever ele próprio, para ver a história literalmente a espalhar-se pela página. Naquele dia, como por milagre, o trabalho corria muito bem; à luz forte do sol meridional, ele imaginava com facilidade o vento e a chuva da Escócia, a linguagem rica e cuidadosa dos seus antepassados. Uma vez comentara com Henry James que tinha vontade de suprimir o elemento visual dos seus livros. Ouvia pessoas a conversar, sentia-as agir, e para ele ficção era isso. Anotou os seus dois objectivos literários:
1.º Guerra ao adjectivo.
2.º Morte ao nervo óptico.
Naquele momento, via o vilão da sua narrativa atravessar a charneca durante a tempestade, sob o efeito das suas paixões, e ouvia-o justificar-se a si próprio perante o Senhor Deus dos Exércitos em frases que rolavam e ribombavam como trovões.»
[Alberto Manguel, Stevenson Sob As Palmeiras; trad. Paulo Henriques Britto, ASA, Junho 2003]

3 comentários:

Cristina Torrão disse...

Este sim, adorei ler.
"Guerra ao adjectivo" - nem mais!
Como eu respeito esses escritores que ainda escreviam à mão... A verdadeira dedicação à escrita.

fallorca disse...

E a lápis? Não perca «Bonsai», Alejandro Zambra (ed. Teorema); não é um curso intensivo de jardinagem, mas... depois dirá.
Abraço

Cristina Torrão disse...

Obrigada pela sugestão.