18 de julho de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (94)

«O publicitário levantou-se vítima de uma súbita comichão que o fez coçar o pescoço. Correu a cortina e olhou para o cume nevado da cordilheira dos Andes.
- Que país curioso, que é o Chile! Apesar de eu ser o melhor publicitário, estou desempregado num país em que tudo é publicidade. Por ser bom publicitário, ameaçam-me, prendem-me, torturam-me, atiram-me de volta à rua marcado a fogo. Quando me oferecem um trabalho que não posso aceitar, é o melhor salário do mundo. Quando me oferecem uma campanha que deveria aceitar, o ordenado é ad honorém.
O senador avançou até à janela e pôs-lhe uma mão fraternal no ombro.
- O seu quadro privado joga muito bem com o quadro público. Uma ditadura feroz que agarrou o poder a tiro de canhão, bombardeamentos aéreos, torturas, prisão, terror, exílio, decide perpetuar-se no poder não pelas armas, mas com o gesto palaciano de submeter a continuidade do regime a um plebiscito. E como coroação da ironia, oferece aos opositores quinze minutos na televisão pela primeira vez em quinze anos de censura total, para convencermos o povo a votar contra o ditador.
- Vão legitimar-se internacionalmente como uma democracia.
- E a única maneira de evitar isso é fazer com que o tiro lhes saia pela culatra. Quer dizer, senhor Bettini, que o senhor faça com que ganhe o «Não». O que me diz?
O publicitário fechou os olhos e esfregou as pálpebras com força, como se quisesse apagar um pesadelo.
- Caro senador, não estou nada optimista quanto à vitória do «Não». Não creio que este país envenenado ideologicamente e aterrorizado se atreva a votar contra o «Sim», e não tenho sequer a mais pequena ideia na minha cabeça sobre qual poderia ser o lema da campanha.
Don Patricio bateu-lhe nas costas afectuosamente, uma vez mais e, levantando as suas fartas sobrancelhas, sorriu.
- Parece-me um valioso capital para começar. Aceita?
Por cima do ombro de don Patricio, Bettini viu estupefacto a mulher a levantar-lhe o dedo polegar aprovador, assomando-o pela porta entreaberta.
- Senador, eis aqui a tradução chilena para a palavra japonesa haraquiri: sim!
O político abraçou-o e pondo o chapéu saiu a correr de casa, talvez com receio de que Bettini se arrependesse.
Pela janela, o publicitário viu-o entrar no carro, e também pôde observar como, assim que arrancou, um automóvel seguia atrás dele.
Decidiu não se alarmar. Desde que não aparecesse publicamente com a sua campanha, não daria um desgosto ao ministro do Interior. Quanto à segurança de don Patricio, pelo menos até ao plebiscito devia estar a salvo. Se Pinochet agora se queria legitimar como um democrata, não podia mandar matar o chefe da oposição. Bom argumento, o de Magdalena. Mas para um país racional, não um onde impera a arbitrariedade.»

[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em tradução para a Teodolito;
legitimação]

4 comentários:

Cristina Torrão disse...

Preto no branco.

Claudia Sousa Dias disse...

tal e qual.

mas dele ainda só li "O carteiro de Pablo Neruda".

fallorca disse...

No final do ano passado, traduzi «Um Pai de Filme».
Se cheiricares «Skármeta» vais encontrar excertos, pantera :)

Claudia Sousa Dias disse...

ok.