28 de julho de 2011

«É bom trabalhar nas Obras» (95)

«Arranco a folha do calendário. O mês que começa está cheio de feriados. O Dia da Pátria, o Dia do Golpe, o Dia do Exército. Na rádio dizem que no mês da pátria vai haver uma amnistia para os presos. Talvez soltem o meu velho.
Falta pouco para o plebiscito.
O pai da Patricia muda de escritório de três em três dias. Procura evitar que arrombem os lugares onde está a fita gravada da campanha contra Pinochet. Quer manter as imagens em segredo para que os publicitários do «Sim» não consigam reagir.
Estamos na aula de desenho. A professora acaba de nos explicar os girassóis amarelos de Van Gogh. Diz que as cores provocam sensações, estados de espírito. O azul é o mais triste de todos. É uma cor fria, como o verde. As outras, são cálidas. Estamos em silêncio com as nossas aguarelas a pintar qualquer coisa que evoque uma emoção. No reverso da página temos de escrever o que é que pretendíamos com o desenho. Espreito o trabalho do Che. Trata-se da cordilheira, mas em vez de neve nos cumes, pôs anjos a baterem as asas. Não sei o que é que pretende.
Eu não me perco. Atrás, anotei «Alegria» e na frente, estou a pintar um arco-íris.
Entra o inspector Pavez. Temos instruções para nos levantarmos cada vez que chega uma visita. Mas o inspector indica-nos com as mãos para permanecermos sentados. Algo na direcção do seu olhar me faz intuir que não me devo sentar. E assim é, porque diz com a sua voz rouca:
- Santos.
Sei o que todos os meus companheiros de turma estão a pensar. Sei que se lembram do dia em que levaram o meu pai preso. E sei que sabem que agora me vão levar a mim. O papi tinha razão. Não me devia ter metido em sarilhos. Fui um estúpido ao fazer o meu discursinho em frente do tenente Bruna. O inspector tem uma expressão grave. Uma seriedade fúnebre. Agora, temo que tenham encontrado o meu pai. Temo que o tenham encontrado morto e é o que o reitor me vai dizer agora, por isso a cara de Pavez, com os queixos cerrados.
Os rapazes sentaram-se, menos o Che.
- Acompanho-te – diz.
Passou-me a mão pelo ombro e aperta-me o braço. Sinto a garganta seca. Olho para os nossos desenhos sobre a mesa e hesito em guardar o meu material na mochila, antes de sair. É tudo tão horrivelmente lento: eu não quero partir e, segundo parece, o inspector quer que me ponha na reitoria dentro de um minuto.
- De que se trata, inspector? – diz, muito calma, a professora de desenho.
O homem não responde e dá uma palmada no ar intimando-me a apressar-me. Opto por deixar tudo como está.
- Porque trocaste a neve pelos anjos, Che? – digo-lhe, soltando-me do braço dele.
- Temos falta de loucos.
Folheia de relance as páginas do seu caderno de croquis e na maior parte das páginas, tem um anjo. Às vezes, a voar, ou deitado, ou sentado na valeta, ou com uma galinha nas mãos.»

[Antonio Skármeta, Os dias do arco-íris; em tradução para a Teodolito;
anjo]

6 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

Não será só bom trabalhar nas obras, será inevitável.

nuno monteiro disse...

ora, o discurso está tomado pelos tecnocratas e paira "uma seriedade fúnebre" que obriga a um calar constante, faltam loucos ora bolas, faltam leitores ávidos e curiosos, dentre os que rodeiam a montanha não há quem acenda um cigarro ou enverede por um caminho...

fallorca disse...

«...que obriga a um calar constante...»
Obriga quem? Os coniventes do costume?

fallorca disse...

Microondas encharcado, não quero outra vida: «Trabalhar nas Obras»

Nuno Monteiro disse...

Fallorca, os que silenciosamente e ordeiramente vão ficando sem empregos e sem dinheiro, esses sim, esses calam, os outros, os compadres ricos amealham, ainda há dias foi publicada a lista dos mais ricos, estão lá os donos do regime.

fallorca disse...

«...ainda há dias foi publicada a lista dos mais ricos, estão lá os donos do regime.»
Foi uma simples actualização; os «tesos» apreciam essas coisas