6 de julho de 2010

«É bom trabalhar nas Obras» (18)

«Caminha pelas inóspitas ruas do seu East End londrino, pelas frias e velhas rotas da sua infância irrecuperável: perdeu por completo a ligação com o mundo, não sabe quem é; talvez nunca o tenha sabido. Agora Riba crê ouvir estranhas vozes na penumbra, e interroga-se se não será o génio da infância que um dia pareceu ausentar-se para sempre. Ou talvez o fantasma do escritor genial que, como editor, sempre desejou descobrir? Arrastou toda a vida um profundo mal-estar por essas ausências. No entanto, é muito pior o ruído surdo de certas presenças, o zunzum do mal do autor, por exemplo, um zumbido que não cessa, uma verdadeira mosca impertinente. Esse estranho zumbido, é um mal natural dos editores. Alguns escutam-no mais do que outros, mas nenhum se livra dele completamente. Há casos extremos, embora Rica nunca tenha estado entre estes. São os daqueles editores – os que têm mais agudizado o mal do autor – que prefeririam publicar livros que não tivessem sido escritos por ninguém, pois assim evitariam o zumbido e veriam, por alto, como a glória do que editaram seria só para eles. Do mesmo modo que a morte acolhe no seu interior o mal da morte, quer dizer, o seu próprio mal, há editores que são corroídos pela sua hidra mais íntima, o mal do autor, que é um rumor de fundo, cujo ruído recorda o estalido de umas folhas secas. Um dia, em Amberes, Riba falou do estalido a Hugo Claus. Falou-lhe da sua condenação a conviver com o mal do autor e comentou-lhe que o seu cérebro estava sempre perfurado pela dor, por esse tenaz monstro íntimo do cabrão do zumbido, que parecia estar sempre a recordar-lhe que não podia ser nada na vida sem ele, sem o mal, sem aquele ruído de fundo, sem aquele estalido tão impiedoso, implacável; sempre a recordar-lhe que o mal, o rumor das folhas secas, era peça imprescindível do mecanismo diabólico da sua relojoaria mental. Hugo Claus, tão famoso por La pena de Bélgica, compadeceu-se dele em silêncio e a seguir limitou-se a comentar: - A dor do editor.»
[Enrique Vila-Matas, Dublinesca; em tradução para a Teorema]

5 comentários:

Anónimo disse...

«Le chagrin des Belges», no original,que tenho e já li há mto tempo , em edição da «livre de poche»:literatura pouco portátil, neste caso - atendendo ao conteúdo e ao volume da obra em questão.
Aviso:também se morre de tanto ler!

fallorca disse...

Mas é, deve ser, uma morte muito literária; santa, tenho as minhas dúvidas

Nuno Monteiro disse...

ora muito bem, nem é tarde nem é cedo e este post é adequadíssimo, desculpe, não me leve a mal, só queria uma resposta sincera

o tradutor, limita-se a procurar palavras ou reescreve?

fallorca disse...

«Copia» para a língua em que escreve e fala, o que lê noutra.
Sigo, fielmente, o princípio de Ricardo Piglia, desde que lhe traduzi «O Último Leitor» (ed. Teorema).

fallorca disse...

Anónimo, Vila-Matas leu-o em espanhol; outros leu na edição original (francesa, inglesa) referida ao longo de «Dublinesca». E o mesmo é válido para os títulos dos filmes que viu em espanhol; e dobrados, não legendados como nós.