1 de julho de 2010

Nem sempre a lápis (50)

Acabo Disse-me Um Adivinho com a sensação de termos viajado juntos. «Numa viagem assim, quem chega nunca é quem partiu», lê-se na contracapa; o mesmo é válido para o leitor. Comecei a lê-lo já na posse da almejada aviadora, onde ainda não me sentei a ler, levei-o para o Sul, mas não o abri em Asilah, apeei-me dele, com um misto de enternecida saudade, no território natural da cama. A viagem não tem distância. Repare-se no caso de Theroux; um dia, apanha um comboio suburbano nos Estados Unidos e desembarca de um de longo curso na Patagónia. Durante o ano de 1993, a conselho de um adivinho, Terzani não viajou de avião e recuperou, entre outras, a noção de viagem e de fronteira; a transposição desse vazio entre culturas, idiomas, crenças, regimes, evocações também. Hoje, duvido que defendesse o sentimento de que o avião as tenha abolido. Há treze anos que me mantenho firmemente terrestre e anfíbio de ferryboat, mas pelo que leio e ouço contar aos praticantes da arte de Ícaro, a era Bush transformou os aeroportos em fronteiras com cortina de ferro pós-maoísta e neo-fascista.
Não me sinto perseguido por preencher o boletim de entrada e saída de Tânger, durante a viagem, mencionando o destino, alojamento, profissão, motivo, origem, residência. Não vou lá gamar nada nem com o espírito colonizador de promover novas oportunidades, mas para fruir a velha e ainda atrasada que me faz viajar no tempo; estático, na raia entre dois tempos. Por outro lado, se me der uma coisinha ou trocarem por uma junta de camelos, sempre se sentem todos mais descansados. Só trouxe uma garrafa de água de Chaouen para trocá-la pela da Serra da Estrela que me acompanhava aqui ao lado há dois anos, também de meio litro. Há pouco, quando bebi um gole, lembrei-me de uma marca muito corrente que detesto, sem me ocorrer o nome. Foi ao arrolhar a garrafa apresentada em Asilah, que reparei na cor diferente da tampa e li, gravado, Sidi ali; lapsos, nunca atribuíveis ao meu espírito nos conformes; arrumação de cegueira mental.

2 comentários:

Cristina Gomes da Silva disse...

Vou levá-lo comigo para a cidade do Bósforo :-)

fallorca disse...

Não pode haver melhor companhia :)
Boa viagem e melhores histórias...